Estamos atrasados. Fui ao Capão Raso este fim de semana e pude constatar: os 27 vasos de flores-de-maio de minha mãe só floresceram agora, em julho. Atrasaram. Ou nós é que aceleramos demais e acabamos atropelando as florações, os cios, os ventos. A natureza desistiu de nos acompanhar e ficamos por nossa conta, pedalando o calendário. Fui até checar as quaresmeiras, seus botões ainda fechados. Dormem, à espera de um inalcançável sábado de aleluia. Enquanto isso, Judas corre pelo mundo, livre para perder as botas onde quiser, longe ou não de seu destino.
Ah, o Capão Raso já foi uma lonjura digna de sete-léguas. Quando criança, eu ia estudar “na cidade”, e não no Centro. Morador de rua sem asfalto, sempre entrava na escola com lama nos sapatos, motivo de vergonha. Hoje a mesma viagem se faz em meia hora de ônibus, nem isso. Mesmo assim, me sinto cada vez mais distante do meu bairro de infância.
É preciso, comparsas, manter as tocaias, vigiar os atrasos
Vou visitá-lo duas vezes por mês. Passeio por aquelas ruas que me viram crescer e fugir, e quase tudo é recente e vertical, prédios altíssimos que se erguem uns contra os outros. Jamais imaginei. Subo ao novo apartamento de minha irmã e, lá de cima, mapeio metade do Paraná. Ver do céu a igreja, a pracinha e a banca de jornais onde eu matava as missas de domingo é como estar numa nave espacial. Ser um alienígena na periferia do universo.
Certas coisas, porém, se preservam. Os cachorros ainda avançam e abanam o rabo simultaneamente, latem sem convicção e para qualquer um que passe por eles, numa nostalgia da própria utilidade, da amizade devida aos humanos, aquele acordo pré-histórico que, em algum ponto de nosso progresso, deixou de lhes ser vantajoso. Hoje guardam o quê? Os últimos terrenos baldios do Capão Raso, cheios de saracuras.
Sim, na minha época de menino, as saracuras eram comuns no bairro. Depois sumiram. E agora estão de volta. Decerto viram na região uma oportunidade de sucesso, a consideram um lugar aprazível onde piar, nidificar, criar a família. Ou então voltaram mesmo é para se vingar. Bem possível. Pensem naqueles olhinhos vermelhos, que nos fitam lateralmente: só podem estar maquinando alguma revanche.
Na casa de meus pais, a população de saracuras só tem crescido. Normal. Se eu fosse uma ave rasteira, pouco afeita aos voos e ao convívio social, amiga dos brejos e das touceiras, me esconderia por lá. E foi de lá que eu vim. Um misto de esconderijo e forte que resiste ao desenvolvimento, lote de mato fechado em meio aos canteiros de obras, selva de bananeiras, trombeteiras e cipós encoberta pelo manto cheiroso dos maracujás.
Sim, gosto de sacar as saracuras. Antes ariscas, hoje confiadas, culpa da quirera com que meu pai polvilha o alpendre. Eu as observo para nada, como se de repente pudessem fazer algo fenomenal, mais que piar e ciscar farelos, e penso que tal esperança disparatada talvez seja o cerne da atividade de um cronista.
A expectativa é absurda, eu sei, mas nela há uma tensão capaz de nos conservar vivos e atentos. Porque é preciso, comparsas, manter as tocaias, vigiar os atrasos. E assim, quando os botões de quaresmeira finalmente se abrirem, sempre haverá quem nos avise.
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