A XV era o som de suas portas de aço sendo erguidas. Um entregador de flores subia a Monsenhor Celso. Carregava seis buquês, com seis rosas vermelhas cada um. Coisa cara, o entregador sabia, e por isso corria entregá-los, alheio às distrações do mundo, rumo às firmas, aos escritórios, às gentis agências bancárias de Curitiba.
O entregador não era nenhum menino, e a subida da Monsenhor quase o venceu. Pelo desagrado em seu rosto, via-se que entregar flores àquela altura da vida – teria, talvez, 40 anos – não era a realização de um sonho. Mesmo assim, ele sabia, as flores não se entregam sozinhas e, não fosse ele a transportá-las, seria outro, a quem caberia o curto salário que lhe pagavam por aquelas longas corridas matinais.
Era cedo. A que horas acordavam os floristas? Recebiam as rosas frescas, extraíam os seus espinhos e as atavam com barbante, inserindo ramos de samambaia, podados, entre as hastes. Depois ainda tinham de dobrar as folhas de celofane, enrolá-las, passar uma fita, cachear outra, e acrescentar à pompa de cada buquê a graça destes mosquitinhos brancos que, por fim, sempre dão aos arranjos um toque de irrealidade, uma aparência de névoa.
As flores não se entregam sozinhas e, não fosse ele a transportá-las, seria outro
O quanto valem tais efeitos? O entregador sabia. Que não gostasse do serviço é compreensível, mas decerto valorizava a arte alheia e as intenções, às vezes hipócritas, de seus clientes. Assim como tudo tem o seu valor, todos têm o seu preço, e as flores, aí, funcionam como moeda alternativa.
O entregador, naquela manhã, não era o único a portar rosas e esperar recompensas. Pela XV corria um segundo homem, na direção oposta à do primeiro. Usava gravata. Nos ombros, trazia uma mochila. Na mão, um botão de rosa, também vermelho, comprado pouco antes, a caminho do trabalho. Era um arranjo simples, uma espiga de trigo enrolada em celofane.
O engravatado não era um madrugador. O cabelo em desalinho, a roupa por passar, tudo sugeria uma ressaca. Apesar disso, tinha lembrado de uma data especial e de alguém a homenagear, o que fazia dele, sem dúvida, um cara sensível. A rosa que levava, e que daria à sua chefe, seria a prova inconteste de sua delicadeza, e quem sabe lhe valesse um aumento.
Mas não. Os dois homens, é pena, se chocaram na esquina da XV e da Monsenhor, no cruzamento dos calçadões. A colisão arruinou parte dos buquês envolvidos. A perda não foi total, mas as rosas se despetalaram, o celofane se amassou e os mosquitinhos saíram voando, feito pipocas estouradas.
Os homens mal se olharam. Um levou a mão à testa, o outro, às têmporas, ambos quietos até o entregador surtar, bradando palavrões ao vento. O engravatado se desculpou, mesmo sabendo que não era o único culpado. De todo modo, estava longe de ser um santo, e preferiu não bancar o prejuízo. Despediu-se e caiu fora.
O entregador avaliou o estrago: entrego ou não? Sem chance. Voltou à floricultura, os buquês deprimidos, de boca para baixo. A rosa do engravatado, porém, permaneceu largada ali na esquina, até que em bom estado. Oportunista, um piá a recolheu. Me pediu, por ela, dois reais. Topei e a trouxe para casa. Está aqui, agora, num copo, a rosa frustrada, a me fazer companhia. Morrendo, enquanto invento esta crônica.
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