Um casal de joões-de-barro está construindo uma casa no pórtico da casa de meus pais. Sempre que os visito, no Capão Raso, vistorio a obra, que me parece interminável. O ritmo dos pássaros me preocupa, assim como o futuro de seu projeto. Num país onde, cada vez mais, a ordem é verticalizar, somei, ao temor de ver demolida a casa de minha infância, o medo de ver arruinado o esforço das aves, antes mesmo de inaugurarem o ninho.
Lembro de uma crônica de Sérgio Porto, em que ele lamenta o sumiço da casa onde cresceu, em Copacabana, e manda um recado a Manuel Bandeira: “A casa demoliram, mas o menino ainda existe”. O achado do cronista me toca, só que, ao lê-lo, nunca deixo de me perguntar: até quando? Pois também os meninos, uma hora ou outra, têm que morrer.
Com os anos aprendi a sintetizá-lo numa ideia: debaixo da terra, escondidos, nossos mortos crescem
Por isso quero falar de um pesadelo recorrente. Vou contá-lo aqui para ver se o ilumino melhor. Sempre que lembramos de algo, erigimos uma nova ponte entre essa memória e sua compreensão. Ponte que, desconfio, também está fadada à queda. Embaixo dela, grosso e sujo, vai o rio do tempo.
No sonho, meus pais finalmente vendem a casa, se rendem ao assédio das construtoras. As escavadeiras vêm chegando e sou tomado pelo pânico. Não que a demolição me apavore. São as máquinas. Elas devastam o pomar de minha mãe, reviram a terra. E foi bem ali, naquele terreno fértil, que ocultei os cadáveres de todas as pessoas que matei. Meus crimes, enfim, virão à tona.
O que acontece, no entanto, ultrapassa a lógica das narrativas policiais. Um primeiro osso é localizado. Para extraí-lo do solo é preciso um guindaste, e vejo erguerem no ar um fêmur humano, gigante. O sonho se interrompe aí, e com os anos aprendi a sintetizá-lo numa ideia: debaixo da terra, escondidos, nossos mortos crescem.
Neste domingo, o pesadelo voltou a me perturbar. Quando levantei, vi que minha filha mais velha se entretinha com meu iPad. Ela se dedicava a um jogo de procriação de dragões e celebrava o nascimento de um filhote “do tipo lama”. Especialista nesse ramo mágico da zoologia, me explicou que tal monstro é a cruza de dois animais de espécies distintas, os dragões dos tipos água e terra. O tipo lama, porém, é uma fera ridícula e simpática, sempre derrotada nos torneios dragontinos.
Ri, pensando na tal matéria de que nos disseram sermos feitos, não aquela mesma dos sonhos, mas o barro simbólico, mistura simples destes dois elementos, a terra, generosa, que acolhe tanto a semente quanto o defunto, e a água, fugidia, com seu poder destrutivo e transformador.
Sim, tenho pensado muito na lama. Quando ando pela Faivre e pela Agostinho Leão com minha filha, vemos muitos joões-de-barro. É que na esquina dessas ruas há uma fonte de lodo, que escorre diária e misteriosamente do muro de uma velha casa. Os pássaros, ali, fazem a festa, habituados à fartura, e se aproximam muito de nós, quase se deixando tocar.
Também tenho pensado muito no Brasil, e num conto curto que escrevi há anos. Nele, um homem otimista aproveita um lamaçal para construir um chiqueiro. Depois, satisfeito, senta-se à sombra e fica esperando os porcos brotarem.
O perigo é se, destes porcos hipotéticos, brotarem só os ossos.
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