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Tornou-se folclórico, entre meus familiares, um moço que ajudava minha mãe a cultivar o seu jardim, décadas atrás, no Capão Raso. Não pelo carinho que dirigia às plantas, inegável, mas por certa estupefação que, volta e meia, o paralisava. Acontecia quando chegava bêbado para o trabalho. Inesquecível a manhã em que o vi de joelhos, diante de um canteiro tomado por alhos-loucos, perguntando a si mesmo: mas isto é flor ou é mato? E com a insistência de um Hamlet, na mão a faquinha de ponta, repetia e reformulava a grande questão ontológica: é flor ou é mato, é mato ou é flor?

Na dúvida, não arrancava, não agia. Não que estivesse confuso. Pelo contrário, sofria de um rompante de clareza. O álcool o desarmava de suas convicções mais básicas, o fazia desconfiar do tino humano na hora de classificar a vida ao redor. Assim, o alho-louco, com suas inflorescências brancas e miúdas, de cheiro forte, haste delicada e furor invasivo, passou a ser, para ele, o frágil emblema das duplas naturezas, das múltiplas intenções. Afinal, aquilo era flor e era mato, qual a diferença? E aí o dilema que o mortificava: com que direito e propósito erradicá-lo a faca?

O alho-louco, com suas inflorescências brancas e miúdas, passou a ser o frágil emblema das duplas naturezas

Contei o caso a minha filha mais velha, que, apesar da pouca idade, já demonstra insatisfação com determinadas taxonomias. Ela entende. Mantém um ótimo relacionamento com as criaturas consideradas daninhas, e delas não exige nada, nem que nos sejam úteis ou inofensivas. Penso que nasceu naturalista, mas prefiro não a rotular. Só sei que, a caminho da escola, vai coletando os espécimes vegetais disponíveis, e espalha suas sementes pelo Alto da Glória, na esperança de ver um matagal subjugar Curitiba. Desenvolveu uma suave obsessão por dentes-de-leão, trevos-brancos, azedinhas, tapetes-ingleses e, claro, alhos-loucos, que ela, após consultar seus compêndios de botânica para leigos, optou por chamar de lágrimas-de-virgem.

Sua paixão mais recente são as epífitas, os parasitas. Neles, ela admira o esforço ginástico, quase dramático, de elevar-se, e o luxo das raízes que esnobam o chão, a escalada em busca de luz e água, a sobrecapa de beleza com que vestem as árvores, fantasia que, às vezes, acaba por matar os fantasiados.

E já que falei de morte, volto ao nosso protagonista, o jardineiro hamletiano. Lembro dele dispensado do serviço, indo para casa curar os porres, reorganizar as ideias: vá, meu querido, e só volte quando estiver sóbrio. Ele descia o beco sem saída e sem asfalto onde morávamos, cambaleando até a canaleta do expresso. Ia sem olhar para trás, em mansa perplexidade, parando apenas debaixo de um pé de amora ou araçá, chocado com a percepção de que aquilo tudo não lhe dizia respeito, não estava sob seu controle, nem a serviço de ninguém. Virava a esquina e desaparecia por semanas. Voltava sóbrio, eficiente, dinâmico. Até a bebedeira seguinte.

Um dia sumiu. Dizem que foi preso, ignoro o motivo, a pena, o desfecho de sua história, se é que já acabou. Mas há quem conte que morreu numa briga de bar, removido da existência numa ponta de faca. Flor ou mato, qual a diferença?

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