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De longe, eles parecem escorar o Paço da Liberdade. Não como se temessem o seu desmoronamento, mas presos a um delírio qualquer de importância. Afinal, na porta da frente do prédio, dois Atlas de pedra fazem o mesmo: amparam os seus mundinhos, conforme lhes foi ordenado. Nos fundos do Paço, porém, a história é outra, e seus pilares e personagens, bem menos poderosos.

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São apenas dois homenzinhos sustentando os próprios corpos. Estruturas bêbadas, nada mitológicas. Não são feitos de rocha, mas têm o seu peso. Só não afirmo que sejam de carne e osso porque, em Curitiba, nunca se sabe.

Um dos caras está bem desanimado. Um capuz esconde a parte superior do seu rosto. Dá para imaginar o ômega em seu cenho enrugado. As mãos embolsadas, os pés juntos. Todo ele está fechado, é quase um sarcófago, numa postura de recusa.

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O outro homem não. Esse vive, ou pelo menos é a impressão que eu tenho. Segura uma caneca e gesticula lentamente, numa mímica de sedução. Ambos estão embriagados demais, é fácil perceber, mesmo a distância. Unidos pelos ombros, lado a lado, são misérias siamesas, as costas na parede do palacete.

As palavras não têm tanta força quanto os vícios e as paixões

À medida que me aproximo, a caminho das floriculturas, vou captando trechos do que balbuciam. O segundo homem procura convencer o primeiro a beber da sua caneca. Só um gole e já estará bom. Trata-se de uma caneca de lata, de tamanho médio. Parece nova, nela não há sinal de corrosão ou ferrugem. Na verdade, há naquela caneca algo estranhamente atraente: ela é limpa e bonita demais em sua simplicidade mineral, um reluzente convite à escuridão.

Mas o outro diz que prometeu algo a alguém, que não beberia mais do que já havia bebido na noite anterior, que já havia decepcionado gente o bastante. Seu companheiro resolve não contra-argumentar. Sabe que as palavras não têm tanta força quanto os vícios e as paixões. Sabe que todo prazer é estúpido e que a sensatez é uma péssima dançarina, dada a vertigens e petrificações, incapaz de relaxar e entregar-se. Por isso, tudo o que oferece ao seu parceiro é sua caneca e seu silêncio. Um gole com um amigo, é o que ele propõe. A amizade é uma guerreira coberta de sangue, inimiga das culpas. Só não perdoa as covardias.

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E o encapuzado cede. Estende a mão para a caneca. O objeto muda de dono, ou antes, torna-se um coração compartilhado, e os braços daqueles homens, esticados no gesto da troca, tomam a forma de uma pinguela precária ligando dois barrancos.

Já estou entre as flores que desejo comprar, mas não dou as costas àquela cena tão comum: a de um homem — só mais um homem — sucumbindo a uma sede — só mais uma sede. E, assim, vejo o encapuzado virar o conteúdo da caneca de uma só vez e, de repente, engasgar-se. O líquido volta ao mundo exterior com a violência de um gêiser, um spray metalizado.

Demoro um pouco para entender que o cara está cuspindo moedas. Moedas postas pelo outro no fundo da caneca. Moedas cor de bronze, prata e ouro que vão se derramando a seus pés, enquanto seu amigo, piadista, diz: “Dívida paga”.

De tanto rir, o sujeito se descola da parede e desaba na calçada. Seu colega, tossindo, perde o equilíbrio e tomba sobre ele. Embolam-se os homenzinhos com o dinheiro e a bebida, rasteiros, pois tudo que nasce há de um dia esparramar-se pelo chão, este nosso nivelador de destinos. E riem juntos, tristes, até o encapuzado decretar: “Estamos quites”.

Compro uma rosa fresca, ainda fechada, e penso em dizer à florista que os nossos mundos, muitas vezes, caem antes de nós. Mas o cheiro da flor fala por mim, e muito melhor. Ela própria é um mundo em botão, nascido para despetalar-se lá em casa.

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