O deambulismo é um traço distintivo fundamental da atividade dos cronistas, tanto quanto o é das almas penadas. Sempre penso nessa relação de crime e castigo quando, em busca de uma crônica, pego o elevador às pressas e saio flanar a trabalho, pelo Centro. Na verdade, não me queixo, gosto de ver o fogo correr pelo rastilho, escrever sentindo o cheiro da pólvora. Sei que todo cronista precisa desta urgência e, também, de uma dupla natureza. Peregrino sem fé, ele parte atrás de ideias e conexões e, enquanto elas não aparecem, flutua por aí feito um fantasma, a projeção futura de seus fracassos semanais. Sim, o cronista é alguém pago para assombrar-se.
É o que tento fazer. Desço ao labirinto da cidade e sigo em frente. Ébano, Cândido Lopes, Osório, Vicente Machado, Visconde do Rio Branco. Cada esquina é uma Meca e uma morte. Às vezes, ao dobrá-las, lembro do que escreveu um francês qualquer, não me vem agora o seu nome, a propósito das motivações de um flâneur: para o escritor andante, virar à esquerda ou à direita já constitui um ato essencialmente poético.
O cara pirou de tanto caminhar a esmo, sonhando com saídas
Hoje dou sorte: com meia dúzia dessas conversões, recupero a carnalidade. É sexta à tarde, chego aos fundos da 24 Horas e estou salvo. Deve ser culpa do verão, é este calor que desentoca o melhor da humanidade subtropical, pois aqui está um de seus espécimes mais raros. Terá, talvez, 20 anos, mas sua barba e seus cabelos pesam, sozinhos, uma década e pouco. É um andarilho inestancável, um campeão de distâncias, com quem já cruzei várias vezes, em tantos lugares.
Nunca para. Impossível vê-lo sem considerar a hipótese da alma penada. Magro, é quase uma múmia de bermudas, os olhos tão opacos quanto a boca é pétrea, os braços, secos, a pele, rachada. Nada nele se move, só as pernas e os pés. É onde deve ter se instalado o feitiço, ali ou em seus tênis Nike furados, vai que são como os sapatinhos vermelhos de Andersen? A sobrevivência, afinal, é uma dança de improvisos.
Mas que delitos esse cara cometeu? Matou o pai, cuspiu na mãe, seviciou a irmãzinha, trocou a tevê da avó por pedras, uma droga por outra, tudo em família, e estamos conversados? Por que o punem desse modo, que sequência inexpiável de pecados o terá convertido neste malaco errante, nesta carcaça inconsumível que se arrasta da Rui Barbosa ao Guaíra, do Relógio das Flores à Estação Central?
Já tentaram pará-lo, interceptá-lo com perguntas tolas, quem é você, de onde vem, aonde vai com tão autocentrado — mas quem disse que tem ouvidos para fora? Sua atenção é para dentro, ele é a própria paisagem pelo avesso. Se ouve alguma coisa é o trânsito em suas ruas internas, um buzinaço nas veias, o coração congestionado — como chegar até lá, já que tudo engarrafou-se?
Ouço dizerem que está chapado, e só então percebo que é isso aí, o cara pirou de tanto caminhar a esmo, sonhando com saídas. Curitiba é sua alucinação e nós, apenas parte de uma viagem desastrosa. Ele é o badaud que nos resta, não um observador do mundo, mas um espectador radical, o extremo espectador, entretido pelas próprias penas. Dentro dele sopram as brisas da nossa época.