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Sim, trabalho com alguns informantes. Um dos mais assíduos é um menino que costuma levar o troco do meu pão ali na Saldanha, na esquina da Panificadora Fênix. Ele embolsa minhas moedas, agradece e, sabendo que escrevo histórias sobre a cidade, se acha no dever de me ajudar. Sorte minha, pois vale a pena. O pequeno é afiado. A última dica que me deu, por exemplo, há coisa de duas semanas, tinha a ver com o brotamento de certa flor exótica na Praça Osório.

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O menino me sugeriu que fosse até lá e visse com meus próprios olhos. Disse que a flor media um metro e meio, mantinha os cabelos cortados à tigela e fumava finos palheiros em meio à folhagem rasteira, bem em frente aos banheiros públicos. Prometi investigar.

Falei que não achei flor alguma, e sim uma pessoa. Ela foi uma pessoa, retrucou o menino; agora é uma flor, evoluiu

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Admito que, em geral, meus informantes valem mais que suas informações. E é assim com este menino, uma potência imaginativa. A primeira descrição que me fez de sua personagem já trazia, subentendida, a forma como eu deveria abordá-la em minha crônica: alguém que desistia de sua humanidade para, aos poucos, ir se transformando em planta.

Grato, aceitei aquela sugestão infantil. Só me custou 50 centavos, afinal. Segui a pista do menino e, como sempre, o lance era quente: a flor estava lá, no local indicado. Fantasias à parte, devo admitir que não se tratava de planta alguma, e sim de uma pessoa comum, das muitas que, ultimamente, têm usado a praça como dormitório. Mas com uma diferença: aquela flor não se misturava com ninguém. Solitária, preferia se instalar debaixo de uma palmeira cabeluda, longe da cancha esportiva ao lado da qual tantos vêm estendendo seus colchonetes.

Assim, o que ela fez foi lançar seus panos por cima da hera e, ajoelhando-se, enraizar-se. Sempre relaxada, o sorriso de alheamento repartido por um cigarrinho, a longa franja sobre uns olhos que nunca vi, e nem sei se existem. Tampouco sei dizer se ela vivia dançando ao som de uma música interior, ou se apenas se deixava embalar pelo vento, torcendo para que ele o despetalasse.

Quando revi meu informante, ele foi logo me perguntando o que eu tinha achado da sua flor. Sei lá por que razão, resolvi provocá-lo. Falei que não achei flor alguma, e sim uma pessoa. Ela foi uma pessoa, retrucou o menino; agora é uma flor, evoluiu. Insisti na dúvida: e se for o contrário? Uma flor decidida a se tornar humana? O outro riu da minha inocência e, tilintando as moedas que lhe dei, quis saber que vantagem a humanização traria a uma flor.

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Pois é, o menino é afiado, tem resposta para tudo. Por isso ando louco para lhe contar o que vi na Osório, neste sábado. Fui visitar a florzinha e ela tinha sumido. Em seu lugar, só encontrei um círculo de vegetação amassada. Um bando de jardineiros rodeava um caminhão da prefeitura, estacionado entre os banheiros e as árvores, e me aproximei do veículo para checar sua carga, novamente assaltado pela fantasia — e se a flor estivesse lá?

Mas não. Na caçamba, só vi galhos caídos, folhas e grimpas secas, cascas de palmeira, hera morta. Por ali não havia nem gente nem flores, exóticas ou ordinárias. Só havia entulho, à espera da remoção.