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Em 1904, Virginia Woolf ouviu passarinhos cantando em grego e, mais tarde, reaproveitou a experiência num romance. Não duvido de seu relato, pois já ouvi outros, parecidos. Recentemente, uma conhecida me contou ter sido avisada sobre a morte de dois familiares por um compungido pardal de penacho. O bicho a procurou em casa, um dia antes do desastre rodoviário que mataria seus parentes, e cantou durante horas debaixo de sua janela. Um canto terrível, mas técnico e, sobretudo, eficiente.

Perguntei à mulher por que é que ela, sabendo da tragédia com antecedência, nada fez para impedi-la, e ela me respondeu com outra pergunta: fazer o quê? O passarinho “não falava português”; de sua mensagem, a receptora só captou o sentido fúnebre. Perplexo, apenas pensei que aquele pardal bem que podia ser um dos passarinhos helenistas de Virginia Woolf, perdido no Brasil, solfejando sobre nosso destino comum.

Em Curitiba, não sei de estatísticas, mas passarinho não tem faltado

Exagero, sei. Nem todo coro é grego e nem todo passarinho, uma Cassandra emplumada. Vejam os sabiás. Em tupi, sabiá significa “aquele que reza muito”. Acho bonito, mas não creio que a carolice caia bem aos pássaros. Fato é que, se rezam, não será pela humanidade. Li, aliás, que o canto do sabiá-laranjeira é a terceira maior causa de barulho em São Paulo, só perdendo para os motores e as buzinas. Triste corrida, que força os passarinhos a orar mais e cada vez mais alto – contra nós.

Em Curitiba, não sei de estatísticas, mas passarinho não tem faltado. A diferença é que os nossos são menos ruidosos, ainda não chegaram ao pódio. Pode ser que rezem em silêncio ou tenham até algum pudor de cantar. Só sei é que, desde que virei cronista, os leitores, com alguma frequência, me trazem a seguinte dúvida: você conhece muito passarinho? Mais ou menos, respondo. Conheço alguns, embora nunca tenhamos sido apresentados formalmente.

Mario Quintana, não lembro onde, escreveu que não conhecia nenhum passarinho pelo nome, e que isso não importava, pois passarinho algum sabia o nome dele. Pode ser, mas não endosso. Talvez os passarinhos tenham um nome guardado para nós, sim, e quem sabe esse nome não nos defina melhor do que aquele que nossos pais nos deram?

Dos passarinhos, enfim, nada sabemos; nem como se chamam, nem como nos chamam. E se hoje falo deles é porque escrevo gripado, direto da cama, onde tenho pensado muito nas aves lá fora. Li, por exemplo, no dicionário do Câmara Cascudo, que o pai do folclorista, estando perigosamente acamado, ouviu uma coruja piar várias vezes perto de casa. Foi o caos entre a criadagem, que só descansou após desentocar o pássaro e calar a tiros os seus maus presságios. E, assim, a morte daquela coruja garantiu mais 40 anos de vida ao doente.

Bem, de minha parte, juro não ter uma alma supersticiosa; meu corpo é que não reage bem à influência de fantasmas. Por isso, do topo da minha febre, passei dias na expectativa de receber um desses emissários. Até agora, nada: coruja, aqui, não há; meus vizinhos urubus são calados; arrulho de pombo não vale; e de sabiá não vi sinal. A única voz que tem me saudado diariamente é a das tirivas, esses passarinhos verdes, impublicáveis, que vêm namorar no meu terraço, tontos no calor deste inverno.

Se gritam o amor em palavrões, em grego ou javanês, quem saberá? Mas deixo aqui uma suspeita, nascida duma ideia de Jayme Ovalle, o compositor de Azulão (e que certa vez se apaixonou por uma pomba nova-iorquina). Para ele, Deus era o Grande Poeta, e o passarinho, um soneto divino. Mas como Deus também deve ser um leitor dos bons, desconfio de que, ao inventar a tiriva, seu espírito pairava sobre um livrinho de Aretino.

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