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Para muita gente, o sinaleiro é uma ribalta. Pare, atenção, siga e estamos conversados. Eles só precisam de uma pequena fração de nossa vida. Disso e de uma moeda. Comigo e com minha filha é assim, a cada cruzamento um artista nos atrasa a caminho da escola. Neste, por exemplo, há um malabarista. Ele carrega três objetos. O primeiro é um cabo de guarda-chuva; o segundo, um cabo de enxada serrado, curto. Ambos enrolados em retalhos, presos com fitas adesivas. O terceiro não: é uma garrafa de vidro embrulhada em plástico-bolha.

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As peças têm tamanhos, formas e pesos diferentes, são impossíveis de controlar, e o espetáculo promete ser mais cômico do que técnico. O artista espera o sinal fechar e, cambaleante, vai até o meio da faixa de segurança. Vira-se para os carros e solta um ou dois urros de gratidão. Mostra não ter “nada aqui” nas mangas e nos bolsos. Abre a boca e nos exibe as mucosas nuas, “nada aqui” nas gengivas, nem a sombra de um dente. E por fim, levantando a camiseta, nos oferece a visão de uma cicatriz que lhe desce do peito à barriga, ou vice-versa, querendo dizer, talvez, que até das vísceras ele já se livrou.

O sinal fica verde e o cara nem se move, decerto sonha com uma cama de serragem e uma lona estrelada sobre ela

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Só então atira os três objetos para cima, todos juntos. Recupera um deles, é o máximo que pode fazer, e deixa o corpo desabar no asfalto, maliciosamente indefeso, seus ossos reproduzindo o som de um chocalho que se quebra. Levanta, recolhe as peças e as arremessa mais uma vez, permitindo que uma delas, na volta, atinja seu ombro. Desaba de novo, dá uma cambalhota para trás e solta gritos falsos de dor e vergonha. Minha filha, comovida, me pergunta: “Temos uma moeda, pai?” Sem conferir os bolsos, eu respondo que não.

O malabarista se ergue de novo e repete o número, já exausto, incapaz de um sorriso, a energia zerada, e nem sequer olha para o céu. Não quer saber onde vão pousar seus cacarecos, está desinteressado, perigosamente distraído, e um deles, logo a garrafa, aterrissa bem no topo de sua cabeça.

O homem desmaia, e suas ferramentas de trabalho agora passeiam livres pela rua, rolam em direção ao meio-fio. O sinal fica verde e o cara nem se move, decerto sonha com uma cama de serragem e uma lona estrelada sobre ela, um circo íntimo e humano, não mais de horrores, onde o único animal amestrado é o homem. Minha filha não diz nada, mas me aperta a mão com força, e sinto que acredita ter presenciado a sua primeira morte. Sem saber o que fazer, a aproximo de mim e digo: “Calma”.

Os motoristas começam a buzinar. Buzinam para a possibilidade de um cadáver, e é como se aquele artista também nos dissesse, acerca da própria carcaça: “Nada aqui”. Um vento invade a rua, se antecipa aos carros e atravessa o cruzamento, parecendo soprar para longe a alma do malabarista de bruços. Alguns automóveis obedecem à súbita ventania, avançam também, impelidos por ela, desviando do corpo caído na faixa de segurança – e é bom mesmo que tomem cuidado, que ninguém machuque seus para-choques.

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Confusa, minha filha quer saber se é verdade que não temos moedas, vai que uma delas não seria capaz de devolver a vida àquele homem, um organismo à base de fichas? Vasculho os bolsos e não, não temos moeda alguma, e lamento por isso, perdi a chance de ressuscitar alguém.

Mesmo assim, o homem se levanta, a imortalidade é o seu grande truque. Levo um susto e minha filha o aplaude. Digo a ela que o cara voltou só para dizer obrigado, olhe, ele tinha esquecido de agradecer ao público. E, enquanto os motoristas passam por ele, xingando sua mãe e brandindo seus dedos médios, o artista vai gritando grato, minha gente, grato, valeu, gratidão, gratidão.