Minhas filhas e eu chegávamos da escola quando, diante da nossa portaria, começou uma confusão. Na calçada de lá da Ébano, um guardador de carros tentava ensacar um urubu. Bravo, o bicho resistia. Escapou do bote e, abrindo alas, correu até a Cruz Machado. Filhote graúdo, não dominava a decolagem. Dobrou a esquina e sumiu de vista, seu perseguidor chutando o vácuo atrás dele, com intenções talvez malazarteanas.
Mesmo na pressa, reconhecemos o pássaro. Duas semanas atrás, publiquei aqui uma crônica sobre ele e seu irmão. Como tantos de sua espécie, nasceram e cresceram ao lado da janela da minha biblioteca. Sim, moro num tradicional ponto de nidificação de urubus na Boca Maldita, e faz 13 anos que os vejo por aí, namorando e me desejando bons dias.
Errou. Voou direto para uma janela fechada, no andar debaixo do meu, e lá se enredou numa malha de segurança
Subimos para casa, angustiados, e encontramos o irmão remanescente aflito, mal se equilibrando no zinco do prédio vizinho. Aproximava-se da borda inclinada do telhado, espiando o abismo onde o outro despencou. Sim, o primeiro urubuzinho deve ter escorregado por ali e, uma vez no ar, batido as asas fracas até pousar, em relativa segurança, no corredor entre os dois edifícios. Lá embaixo, na galeria comercial, viu que o jeito era encarar o trânsito rasteiro. Na Ébano, entendeu que, para um urubu, jamais haverá uma área calma.
Confuso, seu irmão voejava do zinco ao alambrado do terraço, da frente para os fundos do prédio. Gritando, eu quis tocá-lo de volta à segurança do ninho. Sua mãe, eu sabia, retornaria antes do anoitecer. Mas ele nem me olhava, prestes a tomar uma decisão juvenil. Por fim, imitando o parceiro perdido, pulou também no abismo.
Errou. Voou direto para uma janela fechada, no andar debaixo do meu, e lá se enredou numa malha de segurança. Desesperado, as pernas enroladas no náilon, lutou com fúria, até cansar. Então parou, recobrou a força e a serenidade e se atirou de costas. Libertou-se, mas antes continuasse preso: suas asas não responderam, e o bicho se chocou contra a quina do prédio atrás dele. Caiu sem defesa, se embolando nas soleiras de 11 andares, e desapareceu no miolo da quadra.
A mãe chegou meia hora depois. Não achou ninguém. Analisou o telhado de zinco. Farejou o abismo. Percorreu a pé o alambrado. De longe, examinou a malha onde um de seus filhotes se enroscou. E então voou para baixo, a fim de empreender novas investigações. Voltou depressa e, sozinha, foi reocupar o ninho vazio.
À noite, ela ainda estava lá, no escuro. Na noite seguinte também. Mas só pudemos vê-la, gárgula de si própria, graças aos fogos de Natal do Palácio Avenida. Um luto iluminado em vermelho, verde, amarelo, roxo. Surda ao foguetório, indiferente ao canto alegre da humanidade, permaneceu assim durante todo o fim de semana. Às vezes descia voando pelo corredor, mas logo voltava.
No domingo, a surpresa: abri a janela e um dos filhotes, não sei qual, estava de volta ao ninho. Negro e lustroso, a penugem branca quase imperceptível. Como cresceu, pensei, ao notar que já estava bem maior que a mãe. Ou então era a mãe que havia encolhido. Sim, sem dúvida, era ela que estava menor. Reduzida à metade.
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