Ainda menino, vi na tevê uma cornucópia. Foi num filme de aventura, e fiquei pasmo com o prodígio. Centenas de frutas escorriam, inesgotáveis, de um grande chifre para o assoalho de um palácio árabe. Até hoje estão lá, frescas, pedindo para serem colhidas do chão da minha memória. Do filme, já esqueci. Mas, do chamado helicoidal da cornucópia, jamais pude me livrar.
Às vezes penso que vou ao Mercado Municipal só para reencontrá-la em sua forma contemporânea: a quitanda labiríntica, o imenso comércio, o corno da abundância com que sonhavam os antigos. Um estoque de frutas que se repõe da noite para o dia. Você come estas bananas agora, e poderá comê-las de novo amanhã, e depois, até a sápida hora de sua morte. É a selva organizada em gôndolas, a xepa da revolução agrícola, a humanidade retornando às suas práticas mais atávicas. Por aqueles corredores, entre maracujás, melões e abacaxis, flanam, aturdidos, nossos ancestrais coletores.
Nada nos aborrece mais do que levar para casa uma fruta magoada
No mercado, voltamos ao Paleolítico. Especialistas em apalpação de frutas, examinamos suas manchas e molezas, sondamos a integridade de suas cascas, não admitindo o menor dos orifícios, nem sinais de dentes, nem as mais singelas bicadas, pistas ou causas de uma possível corrupção intestina. O mercado é onde recuperamos nossa animalidade desprezada, farejamos de perto cada pêssego que nos é oferecido, intuindo que no escuro de um caroço possa estar guardado o segredo de nossa origem, e a origem de nossa fome. Inaceitável, portanto, comprar uma fruta imperfeita, conspurcar, com uma maçã ferida, já condenada à putrefação, a sacola das maçãs eleitas. Nada nos aborrece mais do que levar para casa uma fruta magoada.
No mercado, redefinimos nossas carências. Os quitandeiros pesam, para nós, meio quilo de laranjas, enquanto nos perguntam, delicados: e uvas, o senhor precisa de uvas? E de cerejas? Nosso pendor, cortês, é dizer não, obrigado, não precisamos de nada. Mas, no fundo, nossa vontade é dizer sim, preciso tanto de figos, careço também de damascos e tâmaras, e ando precisando de jabuticabas e morangos, rijas jabuticabas e morangos profundos, e há em mim, perdoe a fraqueza, essa necessidade perene de pitangas. Só que não, nunca há pitangas à venda, e nem muricis, quixabas, oitis, araçás, guabirobas — e quem sou eu para domesticá-las?
No mercado, tudo é instinto e volúpia, e o que não for virará resto. Não fosse assim, por que a insistência em certas interdições, e tantos avisos proibitivos sobre os produtos ensacados, a granel? Por favor, não toque nas avelãs, não macule as nozes, não perverta as castanhas. Conheci, aliás, um homem que não resistia à tentação das sementes, e mergulhava os braços até os cotovelos em qualquer bacia de pistaches, feijões, lentilhas. Era uma tara: ser massageado pela dureza abastada dos grãos.
Preferia os pinhões, e afundava neles os dedos, cultivando a crença de que ali, na profundeza de um saco de comida, se escondia um prêmio, um tesouro místico. Talvez até uma cornucópia. Seu resgate nos faria revisitar aquele mundo arcaico onde fartura e fantasia eram só duas deusas gêmeas, cobiçando uma à outra, platonicamente incestuosas.
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