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Sempre subo a Agostinho Leão atordoado pela música dos canários no Posto Alto da Glória. São três gaiolas na parede, uma sobre a outra. É lindo ouvi-los, e sei que é um clichê dizê-lo, mas também é reconfortante saber que isso existe, uma beleza tão ordinária quanto inestancável, apesar das grades e do cheiro de gasolina que a sufoca. No fundo, os canários cantam assim é por vingança, para nos atiçar as culpas.

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Comigo são felizes. Até desacelero para pesar melhor as minhas faltas. Dia desses quase parei, o passo esquecido no ar, mas pressentindo nos canários um propósito diferente. Seu canto soava como um aviso, e me pus mais alerta que de costume. Olhei ao redor atrás de predadores, o carcará entre as grimpas, um gato no telhado vizinho. Nada, nem felino, nem rapinante. Tudo o que vi foi um beija-flor.

O beija-flor, vocês sabem, tem o curioso condão de interromper as atividades humanas, fazer cessar, por alguns segundos, as conversas e os fluxos de pensamento, sendo que a aparição de uma dessas aves torna urgente o seu anúncio público: vejam, um beija-flor, rápido, ele estava aqui, mas já se foi.

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O beija-flor, vocês sabem, tem o curioso condão de interromper as atividades humanas

Não o beija-flor da Agostinho Leão. Aquele não voava, não se ia, já era. Caído na calçada sobre a asa direita, a cabecinha decepada a dois metros do corpo. Eu o vi de passagem, nem sei como, tão mínimo, uma gota verde e violeta de metal derretido sobre a pedra, e achei que, mesmo morto, exigia algo de mim.

As pessoas passavam por ele distraídas, saindo do trabalho, subindo e descendo a ladeira, quase todas consultando seus celulares. Não viam o beija-flor e, por isso, não era raro que pisassem nele. Tentei imaginar como o pássaro teria se acabado ali, bem no meio do tráfego pedestre. Caiu do céu, vítima de um mal súbito? Ou sentiu-se tonto, faminto, enojado sei lá por que razões, e pousou onde deu, não encontrando forças ou motivos para decolar de novo? Morreu antes ou depois da primeira pisada?

Obcecado pelas explicações fantasiosas, decidi que o beija-flor sucumbiu à escassez de nossos olhares. Animal perdulário, cujo combustível é a admiração visual que nos desperta, certa tarde descobriu-se invisível, condenado ao ermo do nosso descaso, e desmoronou dramaticamente.

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Criança, eu ouvia dizer as coisas mais bonitas e malucas sobre os beija-flores. Que eram os corações dos índios mortos, esses brasileiros anteriores ao Brasil, subindo ao céu em forma de ave espetacular. Que anunciavam ressurreições, recomeços e mudanças. Havia também quem acreditasse que o beija-flor era o derradeiro estágio metamórfico da borboleta, e o jesuíta Fernão Cardim, no século 17, chegou a jurar haver testemunhado tal transformação, “coisa maravilhosa, ignota aos filósofos”. Hoje ninguém mais mente sobre os beija-flores. Só mentimos sobre o que nos interessa diretamente.

Apanhei o celular, fotografei o cadáver e o postei nas redes sociais para que fosse visto uma última vez, em seus brilhos finais. No dia seguinte, depenado, era só uma carcacinha bege e dobradiça, um fóssil mutante ao sol, algo entre o dinossauro e a barata – quase, quase um ser humano.