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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Sentado à grande janela deste café, na esquina da Marechal com a João Negrão, bebo um expresso. Sou um homem na vitrine, e me sinto estupidamente feliz e seguro. Lá fora esfriou e cai uma garoa; aqui dentro estou seco e aquecido, escoltado por meu guarda-chuva. A essas dádivas quase mínimas, eu sei, uma sombrinha e uma bebida, devo minha felicidade temporária. Mas também à impressão de me sentir um pouco como aquele narrador de Edgar Allan Poe, que de repente descobre, em si mesmo, um calmo e inquisitivo interesse por tudo.

Pela calçada, por exemplo, passeia este sujeito pequenino que, apesar do tamanho, se destaca na multidão apressada. Ele me interessa. Primeiro, por andar devagar, zombando da garoa. Depois, por ostentar orelhas imensas, incompatíveis com sua miudeza. Ao passar por mim, se detém e me encara. Ou melhor, o homenzinho não me vê, apenas confere o próprio reflexo na vidraça do café. Penteia com as mãos a cabeleira molhada, não a fim de embelezar-se, mas com o intuito, talvez, de ajustar sua silhueta a um ideal qualquer de ordem e discrição. Sobe o zíper da japona até encostá-lo no gogó, e apruma-se. Com o novo arranjo dos cabelos, porém, suas orelhas se projetam para longe de seu crânio, e se desdobram, finas asas de cartilagem.

O que lhe segreda a lata de lixo? Nem imagino

Súbito, o homenzinho se vira para trás, como se alguém o tivesse chamado. Vai até uma lixeira, perto do meio-fio, e examina o seu interior. Aproxima o rosto da boca da lata. Intrigado, oferece a ela um ouvido e então se transfigura, parecendo escutar, vindo do íntimo do lixo, uma revelação pessoal. Nada particularmente trágico, ou que lhe cause uma reação de susto ou repugnância. Pelo contrário. Se é que ouve mesmo uma mensagem, ela só pode ter um fundo amorável, pois sua expressão até se suaviza, e um sorriso intercede a seu favor, tornando-a mais interessante.

Mas o que lhe segreda a lata de lixo? Nem imagino. Só sei que o vejo balançar assertivamente a cabeça alada, em luminosa concordância. Fecha os olhos e, ao fazê-lo, me lembra um menino a ouvir o oceano numa concha desabitada, intuindo a indiferença do mundo a partir daquela minúscula morte, ou seja, na irrevogável ausência do molusco que ali morava.

A chuva engrossa e o desperta do transe. Encabulado, ele se afasta da lata, agora com pressa. Pago a conta e saio à rua. Nem sinal do homenzinho. Não sei aonde foi, mas nem se soubesse o seguiria por aí, não sou um personagem de Poe, romântico, ou gótico, ou atormentado. Bastará à minha curiosidade sondar o oco daquela lixeira e, quem sabe, resgatar de lá a pérola de uma crônica, uma Vênus em gestação (ou decomposição), um canto de sereia transmitido via satélite, a quem interessar possa.

Me ponho à disposição do lixo, e me inclino sobre ele, é o trabalho do cronista. Mas não farejo nada. Nada ouço, nada vejo, além da escuridão estéril que caracteriza as lixeiras vazias, e que por fim me faz sorrir da constatação algo atrasada de estar, também eu, aqui fora, me molhando na chuva fria.

Só então me dou conta de que alguém me vigia. É o homenzinho, que me observa da mesa do café, de trás da vitrine, diante de uma xícara vaporosa, enquanto ouve, interessado, as sombrias confidências do meu guarda-chuva.

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