Três caras. O primeiro vivia numa marquise da Cândido de Abreu, nos anos 90. Caderno nas coxas, caneta na mão, estava sempre escrevendo. A todos que via, aquele homem nervoso repetia a mesma solicitação, aparentemente inofensiva: queria de nós uma palavra, só isso, uma esmola verbal, simbólica. E o povo, que costuma se divertir ou se comover com os loucos, acabava por fazer a sua vontade, pingando sobre o pedinte um vocábulo caridoso.
Diziam a ele: dinheiro, saúde, felicidade, amor, paz, mulher, festa, família, recompensa, Jesus, cerveja. O sujeito agradecia, anotava tudo em seu caderno e, excitado, ficava à espera da próxima doação.
Um dia, desconfiado de suas intenções, perguntei a ele qual era o objetivo daquela coleta. Explicou que buscava compor uma espécie de poema móvel e coletivo, que espelhasse não o mundo, a natureza, o país ou a cidade, mas tão-somente o rio de expectativas que percorria sua rua. Gostei da ideia e resolvi ajudar. Dei a ele as palavras chuva, mariposa, palmeira, água, vento, baleia, raposa, fruta; ele agradecia e, satisfeito, as anotava.
O ideal seria que todos os quadradinhos viessem em branco. Mas não: aquele mosaico de perguntas sem cabimento, aquelas dúvidas e obsessões alheias, tudo o desconcentrava
Meses depois, menos entusiasmado, já dizia que a obra não engrenava, não fazia sentido, os versos pareciam represados. Temendo que me responsabilizasse pelo fracasso do projeto, preferi abandonar o quadro de seus colaboradores, passando a evitar tanto a esquina quanto a sanha do poeta. Nunca mais o vi.
Na década seguinte, conheci o segundo protagonista desta crônica. Sempre acocorado à sombra de uma paineira, ao lado do Terminal do Portão, ele devorava palavras cruzadas, e todo o dinheiro que lhe davam era gasto numa banquinha ali perto. Preenchia quadradinhos e mais quadradinhos com os seus garranchos. Sem descanso, sem método, sem lógica nenhuma.
Ignorava os enunciados e as setas, apenas desovava no papel as palavras que lhe vinham à cabeça. Cruzava umas com as outras à força, a fim de provocar colisões produtivas, férteis atropelamentos. A partir de tantos acidentes e improvisos, sonhava fabricar o retrato final de si próprio.
Logo se decepcionou. O ideal, reclamava, seria que todos os quadradinhos viessem em branco. Mas não: aquele mosaico de perguntas sem cabimento, aquelas dúvidas e obsessões alheias, tudo o desconcentrava, era inútil prosseguir. O seu retrato já nascia conspurcado pela fisionomia congestionada dos outros.
Sugeri que comprasse um caderno quadriculado. Ele riu e me disse que tais coisas eram para os matemáticos, e que ele não era Deus para mexer com isso, pois só Deus escrevia, pintava e esculpia com números.
Dez anos depois, encontrei nosso terceiro personagem, também obcecado pelo alfabeto. Eu o via toda manhã, acampado na Praia de Enseada, durante uma temporada de férias. Ele convidava a todos que saíam do mar para um jogo de forca, e cada página do bloco que trazia no colo era reservada para uma “execução”. Compostas, as palavras que queria que adivinhássemos tinham no mínimo 15 letras: eram os nomes científicos de plantas ou animais já extintos.
Na verdade, tratava-se de um artista talentoso, um delicado miniaturista. Enquanto tentávamos desvendar as charadas que nos propunha, ele nos ia desenhando a lápis, em detalhes, na ponta de uma corda: orelhas, olhos, boca, nariz, cabelos, músculos, mãos, mamilos, dedos, unhas, roupas, botões. Perdíamos, é claro, e, no fim das partidas, o que restava de cada jogador era uma cópia perfeita e minúscula de seu cadáver, dependurada sobre letras e lacunas impenetráveis.
Curioso, perguntei àquele carrasco qual era o propósito de sua obra. Ele fechou sua grossa coleção de perdedores e soletrou:
N-E-N-H-U-M.”
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