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Morreu a araucária mirrada da Pracinha do Amor. Os ventos da madrugada de quinta a derrubaram. Tão logo soube de sua queda, decidi me despedir da árvore que tantas vezes apareceu nestas crônicas. Só que me atrasei e, não chegando a tempo de acompanhar sua remoção, tudo que vi por lá, onde antes se erguia minha velha vizinha, foi um amontoado de terra. Uma cova na Saldanha Marinho.

Amputada de um membro quintessencial, a praça já era outra. Ou então era eu que há meses não a visitava e, desaclimatado, estranhava nela alguma novidade. Saudoso, refiz o antigo trajeto da escolinha de minhas filhas e, no caminho, nada aconteceu. Nenhuma epifania, nenhum convite à fabulação. Havia gente nova sob as marquises, à porta dos comércios, dos bares, da sauna. Pichos recentes na sinagoga, tinta fresca em certas fachadas. Mas nada de realmente novo sob o sol. Na verdade, nem sol havia, e também isso, vocês sabem, é notícia ordinária.

Era um modelo de três lugares, antigo e sem graça, mas que um dia alguém julgou bonito e confortável

De repente, na esquina da Ermelino, vi um sofá ao relento. Feito um animal abatido, desovado às pressas. Sua cor, um mistério. Poderia ter sido rosa, ou marrom. Agora era bege, tijolo, ocre. Vinho desbotando. Não arrisco calcular quantas vezes teria pernoitado naquele cruzamento, à mercê do povo, promovido a esponja de urina, cama de campanha, ninho de amores e ratazanas. Ao passar por ele, apenas parei, tentando conceber com que intenções resolveram largá-lo ali, junto àquela parede cega, de janelas vedadas.

Era um modelo de três lugares, antigo e sem graça, mas que um dia alguém julgou bonito e confortável — afinal, quantas pessoas, em décadas, não o terão comprado e reformado? Talvez o sofá já estivesse em seu terceiro ou quarto revestimento, reencarnações mais ou menos sóbrias de um mesmo espírito floral, e que em seu colo terá acolhido, sem queixas ou críticas, uma longa e aleatória série de bundas, corpos nus e suados, limpos ou sujos, doentes ou sadios, todos pescando diante de tevês ou monitores de senha, à espera de um sim da namorada, da vez no dentista ou na zona, ou até, quem sabe, de sua derradeira consulta médica.

Só sei é que, na quinta, flagrei aquele sofá na esquina da Ermelino com a Saldanha, recuperando-se da mesma chuva que derrubou a araucária mirrada da Pracinha do Amor. Estava coberto de papéis de bombom. Sim, alguém, sozinho ou não, havia se deitado sobre ele, na noite anterior, e devorado uma caixa de chocolates baratos, enquanto no céu se preparava a ventania. Terá sido uma noite especial, antes dos ventos. Prova disso é a camisinha que se escondia, ainda úmida, numa fenda entre duas almofadas, como uma lacraia não mais ameaçadora, mas milagrosamente enternecida.

No encosto do sofá, porém, também vi vários cortes verticais, profundos. Deles brotava uma espuma amarela, lembrando vísceras purulentas. Olhei melhor: eram facadas. Havia manchas escuras no revestimento do móvel, nódoas abstratas nas quais um exegeta de passagem poderia enxergar o que bem quisesse: a face de Cristo, o estigma de Caim, o Brasil do futuro ou, simplesmente, o sangue de um zé-ninguém, só mais um azarado entre os azarados. Araucárias que o vento vai ceifando, vocês sabem. Golpes na paisagem.

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