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Sexta passada, beijei minha mulher e as meninas, fui à rodoviária, subi num ônibus e, duas horas depois, desembarquei em Guaratuba para dois dias de solidão e descanso. Foi um arroubo adolescente. Cheguei à meia-noite, matei uma pizza e uma Coca, arrisquei um sorvete de pistache e caí na cama, insone, mas de cabeça vazia e estômago cheio.

Que no ano novo nenhum amante se machuque, se perca, se desperdice, se corrompa, se apague ou adoeça, de amor ou desamor, amém

O vento nas palmeiras imitava o som de um rio correndo sob o meu colchão. Saí para a sacada e tudo parecia normal, aquele breu no céu, sem lua nem estrela, prenúncio de chuvas comuns. Do escuro lá embaixo, no miolo da quadra, é que vinha a novidade: os risos e vozes de um casal invisível, um rapaz e uma moça bêbados, muito jovens. Brincavam na piscina atrás de um sobrado, tinham acabado de chegar, não sei se da estrada ou do barzinho, as luzes apagadas por precaução, provavelmente nus. Tudo que dava para ver eram seus vultos num fluido negro, duas lontras falantes, escandalosas, atracadas à sombra uma da outra.

Por um minuto, temi que se afogassem, os doidos, mas fiz um esforço, garimpei um grão de fé no meu passado de menino católico, e me obriguei a crer que Deus protege os amantes bêbados. Ora, alguém dirá, isso nem de longe é verdade. Sim, eu sei, mas bem que poderia ser, e nada nos custaria transformar uma mentira besta num bom voto. Portanto, que seja este um dos meus desejos para o ano novo: que a partir dele nenhum amante, bêbado ou abstêmio, chapado ou careta, se machuque, se perca, se desperdice, se corrompa, se deprecie, se desgoverne, se apague ou adoeça, de amor ou desamor, amém.

Benett

Dormi de manhã, quase nada. Fui à praia apressado, antes que a chuva prometida pela meteorologia me encarcerasse no apartamento. A orla estava cheia. Os garis varriam a folharada dos sombreiros, os atletas iam e vinham no calçadão, um trator trafegava pela beira-mar, preparando o terreno para a temporada. E em meio aos banhistas, espuma pelas canelas, um senhor circunspecto e barrigudo, alheio a tudo aquilo, tentava pescar. Fazia o tipo clássico: boné, bermuda e ar de especialista, o caniço ereto, fincado na areia molhada, e uma atenção exclusivamente voltada à remota possibilidade de um peixe, à bênção de um beliscão, à derradeira mordida. A felicidade, afinal, é um animal de prata riscando o brilho matinal das marolas.

Atrás do pescador, sua esposa se bronzeava de bruços, as alças do maiô arriadas, ombros gordos e sardentos, rosto enterrado no chão. Praticava alguma modalidade mental e mais sofisticada de pesca, pois prescindia de poses e varas, iscas e arpões, e até mesmo de sentidos e consciência.

E aí o sono me bateu. Voltei para casa pensando em lençóis e feijoadas. Tomei uma ducha e fui à sacada checar as nuvens. A chuva vinha chegando da baía. Me estiquei ao sol, pus as mãos no parapeito, alonguei as costas, bocejei e só então lembrei de olhar, lá embaixo, a piscina onde, de madrugada, brincaram e, quem sabe, dissolveram-se os amantes aquáticos. A água estava exageradamente suja, verde, opaca. Mas, e daí? Ao redor da piscina, esturricadas, as roupas do casal esperavam pela tempestade que, mais uma vez, as lavaria.

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