Na saída do Passeio Público, me aborda um cara de olho roxo e guarda-chuva. O guarda-chuva tem as varetas soltas, o cabo torto, a lona pelo avesso. O cara tem um corte na testa, sangue no bigode, respingos na regata. Ambos, homem e utensílio, estão em péssimo estado, mas, diante de suas avarias, simulo certa naturalidade, uma cegueira cortês. Pois não?
O cara é educado, me agradece pela disposição de ouvi-lo. Reclama da garoa e, sorrindo, me pergunta se não quero comprar seu guarda-chuva. É automático, está na promoção, quinze pilas. Aquilo me intriga, e não recuso de imediato. O vendedor registra minha hesitação e se adianta: é seminovo. Sorrio de volta, não, obrigado, mas o cara melhora a oferta: é o último do estoque, estamos liquidando, dezão paga.
Acontece que já tenho um guarda-chuva. Está na minha mochila. É o que digo ao vendedor. O homem, porém, me estranha. Entrega-se a um espanto eivado de incredulidades: já tem guarda-chuva, mas prefere se molhar?
Para essa pergunta, não disponho de resposta objetiva. Não é que eu prefira. Mas é como se abrir um guarda-chuva fosse um ato de rendição que tento adiar a todo custo. O oposto de desembainhar uma espada, brandir uma lança. Uma admissão, irracional, de derrota. Sei, no entanto, que não devo explicações ao vendedor. Por isso, dou-lhe bom dia e me retiro. Ele se ofende com a evasiva e me segue, querendo argumentos. Ou, no mínimo, uma garça pelo guarda-chuva.
É como se abrir um guarda-chuva fosse um ato de rendição que tento adiar a todo custo
Prefiro pagar. E estou a ponto de abrir a carteira quando, de repente, o vendedor me abandona. Não o culpo, o cara avistou freguesa melhor na esquina da Cavalcanti com a Presidente Faria. Eu a conheço. Ela está sempre ali, naquele cruzamento sem marquises, escorada nas grades do estacionamento.
Mancando, o vendedor corre até ela, que o recebe com solicitude. Mal os escuto daqui, do outro lado da rua, mas acompanho, de longe, a pantomima de suas transações. Ele a cobre com o guarda-chuva, protegendo-a da garoa. Ela diz obrigada, e é tão fácil ler seus lábios, o batom rosa, fosforescente, lembrando o escândalo de uma caneta marca-texto. O cara sorri, ela também, e eles se ombreiam, meigos e mudos, como num filme do Carlitos.
A moça nota os ferimentos no homem, enruga-se de dó, quase toca o inchaço em seu rosto, e tenho a impressão de que esse toque, se efetivado, já poderia curá-los de metade de suas angústias. Mas o vendedor se precipita, aproveita o bom momento para oferecer à moça o guarda-chuva, quinze pilas. Ela ri alto, avalia a armação enferrujada sobre sua cabeça: nem a pau. Ele insiste, ela faz uma contraproposta, ele apalpa os bolsos, ela balança os cachos ruivos.
E a garoa engrossa. Sou forçado a sacar da mochila a minha velha automática. O botão estragou há meses, a lona lilás está frouxa. As hastes emperram quando tento abri-las manualmente, e minha camisa se ensopa.
Desisto, o mecanismo se arruinou. Volto a olhar para a esquina. Localizo o cara e a moça mais adiante, à porta de uma pensão. Entram. Um deles se rendeu, os informais se entendem. O guarda-chuva é que ficou de fora, ao pé de um poste. Largo minha sombrinha ao lado dele, e os deixo lá, um belo casal de insetos espezinhados, como dizia o Cortázar.
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