| Foto: /

Quando criança, fui um ótimo desenhista, mas meu talento não sobreviveu à adolescência. Cedo, me reconheci medíocre e abandonei uma longa rotina de aulas com o professor Luiz Carlos de Andrade Lima. Era 1988. Ao saber de minha desistência precoce, ele foi duro comigo, me tratou como a um covarde. E estava certo, embora eu também estivesse. Porque minha renúncia era fruto de um entendimento especial, adquirido ali mesmo, com ele. Eu havia aprendido, entre outras coisas, a amadurecer com os meus fracassos. Apesar disso, naquele dia ruim, saí de seu ateliê com a confiança machucada, a milésima medalha de vergonha no peito. Foi uma educação.

CARREGANDO :)

Caberia aqui, concordo, uma breve biografia de Andrade Lima. Muitos não saberão quem foi ele, e não os culpo. Mas penso em Hilda Hilst e nas crônicas que ela publicou já no fim da vida. Sempre que sentia preguiça de apresentar um personagem a seus leitores, Hilda lançava mão de um recurso tão divertido quanto mal-educado. Entre parênteses, depois de citar determinado artista, ela aconselhava: “(informe-se)”.

É ela, a luz, que nos apresenta às coisas, e é a escuridão que as protege de nossas certezas e intromissões

Publicidade

Era uma grosseria espirituosa, que se ajustava bem ao estilo dela. Em mim, claro, jamais funcionaria. Por isso, se me perguntarem quem foi Luiz Carlos de Andrade Lima, responderei: foi meu melhor professor. Por ora, é o que preciso dizer neste texto, um jeito acanhado de agradecer pelo que ele me fez.

Já me pediram que escrevesse mais sobre o mestre, e prometi que o faria. É pena, mas quase ninguém, hoje, fala sobre ele. Nosso tempo vem sendo tomado, cada vez mais, por figuras nefastas, autoridades burras e truculentas, e o palco de nossos debates públicos, repleto de canastrões, tornou-se um brejo de lodo e sangue. Sim, é urgente misturar outras tintas nesta paleta, e o professor, entre tantas, foi uma das mais brilhantes. E insolúveis.

Menino, eu ia de ônibus ao ateliê da Rua Buenos Aires. Pegava o expresso no Capão Raso e descia no Batel, uma viagem tensa para um cara do meu tamanho. Eu carregava uma pasta enorme, atulhada de esboços, e mais uma maleta pesada, com bisnagas, lápis, solventes e pincéis. A carga era quase maior que o aluno, mas bem mais leve que suas pretensões.

O professor me pedia que, no caminho, invisível como um desses fotógrafos na selva, eu observasse os passageiros ao meu redor. Dentre todos, eu deveria escolher o que me parecesse mais notável. Minha tarefa era memorizar essa pessoa. Decorar seus ângulos, registrar suas cores e a textura de sua pele, analisar olhos, cabelos, bigodes, brincos, acessórios. E, quando me sentasse ao cavalete, mais tarde, eu retrataria não o modelo que namorei no expresso, mas a história que, nele, eu conseguisse capturar.

Publicidade

Ler o outro e seus mundos, narrar com imagens, ilustrar com palavras — foi o que o professor me ensinou. Às vezes, eu passava o dia todo diante de uma mulher petrificada. Noutras, era seu motorista quem posava para nós, ou um ator seminu. O professor punha à nossa frente um torso de gesso, uma cabeça trincada, uma forma geométrica qualquer, um arranjo de copos ou frutas. E nos fazia ver, em cada coisa, a sua história pregressa e o nosso destino comum.

O pomar onde vingaram aquelas maçãs, as mãos que as colheram, os caminhões que as transportaram à feira, a sujeira da grana que as comprou, o hálito do vidraceiro no bojo de antigas garrafas, o chupão de alguém no queixo escanhoado do modelo trêmulo. E a claridade que morria sobre tudo aquilo.

É ela, a luz, que nos apresenta às coisas, e é a escuridão que as protege de nossas certezas e intromissões. O professor me introduziu a esse alfabeto de luzes, sombras e transparências.