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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Theotokos. Sim, é grego. Está gravado naquela efígie de Nossa Senhora, embutida numa parede do seu santuário. No Alto da Glória, os fiéis não falam grego, mas o intuem. Por isso se espremem ao redor da santa, querendo tocá-la. Ou esfregar, em seu rosto dourado, uma flor, uma fralda, um pacote de velas. Entre os blocos de pedra, socam bilhetinhos para a virgem. Pedem curas e bênçãos. Chega uma moça e encaixa, numa fenda, a miniatura de uma chupeta. É triste. Mas no fim, vocês sabem, vai dar tudo certo. Não vai?

Um gigante se aproxima. Oitenta anos, forte, singra o mar de senhorinhas e, à sua passagem, as mulheres tropeçam umas nas outras, embolam-se como marolas chegando à praia, espuma evanescente. Só que, ao contrário das ondas, elas não chiam, há muito aprenderam a amordaçar seu ódio.

O velho é alto, e sua barriga, uma rocha redonda. Usa óculos escuros, tão pretos quanto a tinta em seu cabelo. Com facilidade, alcança a efígie, a mão espalmada na cara da mãe de Deus. Encosta a papada no peito, a camisa aberta, o único ali imune ao frio. Reza, decerto, mas pede ou agradece? Difícil dizer, o semblante pacífico, distante de qualquer fervor. Nele não há dor, só obediência. É como se cumprisse uma convenção social, uma visita obrigatória à avó, vim falar com a santinha e pronto, agora é tocar o barco. Ou melhor, o porta-aviões.

No Alto da Glória, os fiéis não falam grego, mas o intuem

Finda a prece, é o sinal-da-cruz, a meia-volta, as barracas de pastel, as gatas saindo da novena. O velho vai passear sua abundância entre os feirantes. Assobia. Sua força é a confiança, a juventude da alma, as calças justas mal ocultando suas posses: a carteira, o sexo, o maço de Free, as chaves do carro. Sente cheiro de bacon e para na carrocinha de pipoca. Avalia sua fome, faz cálculos sofridos, decide pedir um saquinho, mas é detido por um chamado, um vocativo que brota do chão.

Moooço – é uma mulher que chama, alongando as vogais chorosas, moooço, o M numa inflexão de balido. Na real, uma menina. Mal agasalhada, descalça, remela no olho. Traz no colo um charuto de lã, o piá de um ano, saliva seca em torno de um lindo beicinho.

Moooço, ela diz, e estende a mão ao velho, uma cancela a lhe barrar o acesso ao pipoqueiro. Ele se irrita e, de repente, se contorce. Parece até possuído, não pelo demo, e sim pelo espírito de um saltimbanco. Põe-se a imitar a mocinha sem dó, mas com talento, no timbre chato da voz, moooço, na postura de derrota, no círculo dos lábios ao gemer.

Ela se ofende e abraça o filho, na vã esperança de isolá-lo das grosserias do mundo. O velho entorta ainda mais o corpo elefantino, numa pantomima cruel, moooço, moooço. Mas o bebê começa a rir, que surpresa, achou graça no vovô. E a mãe ri do bebê, até mostra os dentes. Já o velho, satisfeito, inventa de dançar, improvisando uma melodia monocórdica para a letra que o obceca: moço, moço, moço...

Os três riem. O velho tira do bolso a carteira e pinga sobre a dupla uma nota de cinco, a única que achou. Subitamente séria, a mãe agradece, Deus lhe pague, moço. Mas o moço, velhíssimo e pantagruélico, faz o adendo indispensável: “A minha parte em pipocas”.

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