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O que um cronista sem fé pode fazer por uma mulher morta?

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Quando viva, confesso, ela já não podia contar comigo. Eu a via ajoelhada em frente às Lojas Americanas e passava batido. Apenas admirava sua pose de personagem bíblica, sua paciência de falsa monja, a figura de ironia e magreza. E ela também não me dava confiança. Não me pedia nada, nem dinheiro, nem atenção. Não tinha histórias para me contar, e nem eu precisava ser comovido por seus dramas.

Éramos vizinhos meio mudos, ambos morando na Ébano Pereira, eu num prédio, ela debaixo de uma marquise. Não nos cumprimentávamos, apesar dos anos de convivência amistosa e diária. Não que jamais conversasse comigo; conversava, sim, mas somente quando me via com minha filha mais velha. Aí, sorria, falava das roupas que a menina usava, aprovava algumas peças, desaprovava outras, comentava o arranjo de seus cabelos, crespos como os dela. Nessas horas, imagino que talvez se lembrasse do filho, ou filha, que teve na rua, recentemente, e que teria entregado à adoção.

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Dizem por aí que não foi o primeiro. Seria já a segunda criança de que abdicava. Melhor assim, cochicha o povo daqui, ela não seria boa mãe, apesar de boa gente. Quase todos gostavam dela, é verdade, e quase todos garantem haver sido dolorosamente bonita. E talvez ainda o fosse, por que não? Com aqueles seus olhos e ossos saltados, a pele de pergaminho, sua beleza dependia mais de nossa sensibilidade que de sua saúde.

Era só uma mulher vivendo entre seus trapos, e mesmo assim vaidosa, os cachos curtos pintados de vermelho. Ia morrendo devagar, como os mais sortudos de nós. Quando não estava dormindo ou se virando por aí, estava lendo. Livros de sebo, revistas velhas, a Gazeta do Povo ao lado de seu colchão. Se chegou a ler um texto meu, teve a delicadeza de não me contar.

O sangue do horror não coagula, e as mortes sangrentas nunca envelhecem. Estarão sempre frescas, como princesas em caixões de cristal

Fato é que faz tempo que deixei de ser repórter, não tenho compromissos profissionais com a informação ou com a objetividade. Escrevo crônicas, e uma crônica, muitas vezes, é só um exercício compartilhado de desesperança. Por isso, peço que me entendam: não darei aqui os detalhes do assassinato da minha vizinha, nem julgarei sua conduta. De sua morte, fui uma testemunha cega, e os únicos crimes que um dia poderei reconstituir são os meus.

Assim, digo que era o início de uma madrugada quente, e as crianças dormiam agitadas. De repente, dois tiros, muito próximos e agudos, me içaram do fundo de um conto de Kafka. Larguei o livro e levantei da cama, estranhando a quietude na quadra. Em geral, depois de tiros, há choro, gritos, ofensas, pedidos de socorro, ruídos de briga. Naquela noite, não. Só havia silêncio. Quis sair ao terraço, como costumo fazer, mas minha mulher não deixou, tinha maus pressentimentos. Fui à janela da área de serviço: a esquina da Biblioteca Pública era uma encruzilhada no deserto. Deitei, mas não dormi, nem voltei à leitura.

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Só de manhã soube do acontecido. Os trapos da morta jaziam amontoados na esquina da Ébano com a Cândido Lopes, à espera do caminhão de lixo. Seus companheiros de rua revolviam o monturo de sua memória, e dali resgatavam blusas, papéis, isqueiros, sapatos, fotos — o espólio de uma rainha interrompida.

Esta crônica, é claro, não terá o poder de ressuscitá-la; pelo contrário, só aumentará a pilha de seus despojos. Demorei a escrevê-la, hesitei, achei que não devia. Afinal, já se passaram tantas semanas desde o homicídio, para que desenterrá-lo?

Não faço ideia, mas sei que o sangue do horror não coagula, e que as mortes sangrentas nunca envelhecem. Estarão sempre frescas, como princesas em caixões de cristal, sem ninguém que as beije.