Dos cronistas, sempre querem saber se não sofrem de falta de assunto. Quando me perguntam, banco o forte, digo que sofrimento é outra coisa, há carências piores. Literatura não é rosário, e toda crônica, assim como a amizade e, às vezes, o amor, nasce desses vazios entre nós. Por isso, não reclamo quando me dá um branco. Passeio por ele e me deixo perder em suas lacunas, a despreocupação me servindo de caminhão limpa-neves. Uma hora, chego lá; aonde, não importa.
Vinicius de Moraes, num texto famoso sobre o tema, aconselhava, entre outros recursos, ir à janela, decerto espreitar as musas. É minha primeira providência. Tenho fixação por janelas, vejo uma parede e já quero esburacá-la. Bloqueado, levanto do computador, vou passar um café, levo uma xícara ao terraço e fico ali, numa preguiça de enrugar cotovelos, admirando o mar curitibano lá embaixo, e o sol nascendo de novo, e de novo, sobre a secura de nossas fontes.
Avalio o grande cinema pornô, ancorado em frente ao meu apartamento. Dele, só consigo ver o telhado, e para que mais? O encardimento de suas telhas onduladas, a calma de seus exaustores eólicos, o avanço das tirivas por entre as calhas do galpão, tudo me parece correto, tudo tem a sua beleza.
A mim, o prédio lembra uma gigantesca caixa de abelhas, uma colmeia sem meta nem rainha, apenas peões em constante atividade, embora quietos, contidos. A cidade ao redor, tão produtiva, não gosta de ser incomodada pelo zunzum dessa gente, mas algum mel, eu sei, também se produz na escuridão. Só não me perguntem de que tipo, ou para o consumo de quem.
Descascar uma fruta é um gesto banal, mas estranhamente bonito
Os exaustores é que me fascinam: alumínio, aço e bafo girando sem parar, oito dervixes em transe, purificando o ar lá dentro. Uma dança serena e mística, sem dúvida agradável a Deus. Afinal, quem mais purificaria qualquer coisa no Centro de Curitiba?
Quando o mirante não me basta, desço ao chão, tão sujo quanto o céu. Vou à Boca, à Praça Osório, à Rui Barbosa, ao Mercado Central, ao restaurante popular. Lá, me distraio, apreciando a habilidade de meus comensais no manejo quase musical de seus talheres. Espio o povo almoçando e, no canto de cada bandeja — são centenas delas —, uma laranja paciente, à espera da faca.
Descascar uma fruta é um gesto banal, mas estranhamente bonito. E é por isso que a comunhão entre tantas bocas, lâminas e laranjas à minha volta, e o movimento espiral de tantas mãos e esferas, as curvas cirúrgicas de cada faca e a sincronia entre todas aquelas fomes amainadas, tudo acaba assumindo, para o cronista, a forma de um lindo balé de desnudamento, em que as frutas se deixam ferir, despir e chupar por uma humanidade enfim silenciada.
Mas também gosto de sair de casa em horários mortos, e não ver ninguém. Num sábado, às 6 da manhã, caminho pela Vicente Machado, rumo ao Batel, feliz por perceber que não há trânsito. A ausência de carros favorece as árvores baixas na calçada, faz com que as extremosas e os hibiscos pareçam mais altos e floridos.
De repente, uma caixa de papelão se desprende de um monte de lixo, e o vento a atira contra mim. Dou um salto e, no último segundo, escapo da colisão. A caixa se choca contra a portaria de um edifício residencial e, de dentro dela, sai ileso o seu único e surpreendente ocupante: um rato cinzento, perplexo, entontecido pela viagem inesperada que fez. Eu me abaixo e digo a ele:
“Nascemos de novo, camarada.”
Nisso, o rato e eu somos como o sol. Acho que é este o lugar a que eu queria chegar, e nem sabia. Escrever é registrar rotações e renascimentos. O cronista é um dançarino acidental, e a natureza, sua melhor coreógrafa.