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Luís Henrique Pellanda

Sangue de árvore, seiva de gente

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Numa folha avulsa, Kafka escreveu que muita gente, para não se afogar, flutua por aí agarrada a um traço a lápis. Sempre penso nisso na hora de produzir minha crônica semanal. A fim de me manter à tona, mesmo que à deriva, preciso ir me agarrando a essas coisas miúdas que a vida, caudalosa, leva de arrasto. Talvez por isso eu tenha criado o hábito de acordar cedo e logo ir à sala, erguer as cortinas. Subo os panos do mundo como o faria o velho funcionário de um teatro, íntimo de sua maquinaria. Com aquela esperança meio rotineira, e já um tanto débil, de finalmente estar descortinando um bom espetáculo.

Às vezes funciona. Certa manhã, descobri, lá embaixo, uma ameixeira carregada. Nunca a tinha visto antes e, realmente, ela nem chega a ser notável. Ainda mais se comparada à vegetação do Passeio Público, que domina a vista do meu apartamento. É uma ameixeira discreta, incapaz de competir com os plátanos e os jacarandás da vizinhança. Isso, porém, não a impede de se erguer, honesta, ciente de suas funções biológicas, rente ao muro do Círculo Militar. A três metros do chão, abre-se numa copa escura e se espalha sobre a calçada da Conselheiro Araújo, sem, no entanto, alcançar o asfalto. Frutifica e faz sombra, e esse é o trabalho que se espera de uma árvore.

Mas, afinal, o que vem a ser um homem deitado sob uma árvore?

Nas noites limpas, um homem — ou pelo menos aquilo que, a distância, se assemelha a um homem — dorme debaixo da ameixeira. De modo que, pela manhã, ao erguer as cortinas, a primeira coisa que vejo, se não estiver chovendo, é um homem dormindo. Alguém que não procura uma cama de albergue. Que desdenha do abrigo precário das marquises e da companhia noturna de outros homens. Um homem que simplesmente prefere a árvore.

Mas, afinal, o que vem a ser um homem deitado sob uma árvore? Dentro do grandioso esquema da natureza, ele nada mais é do que um traço horizontal. E a árvore, opondo-se a ele, seria, por sua vez, um traço vertical, que se expande em direção ao céu, ao mesmo tempo em que se lança às profundezas, atrás de alguma estabilidade. Debaixo da minha janela, portanto, um homem e uma árvore amanhecem, todos os dias, transfigurados num belo e atraente ângulo reto.

Ao redor daquele homem e de seu sono, é normal que se acumulem várias ameixinhas amarelas, maduras demais, caídas durante a madrugada. Assim, visto daqui de cima, o homenzinho até parece encantado, adormecido em meio a moedas de ouro. E essa imagem insólita me faz lembrar de uma fábula italiana, nem sei se conhecida, acerca de um jovem tão preguiçoso que, ao cochilar boquiaberto sob uma figueira, apenas aguardava a queda dos figos. Quando acontecia de um cair em sua boca, ele o engolia devagar e sem esforço, mantendo-se satisfatoriamente vivo.

Só que não, aqui não se trata de preguiça, embora tenha a ver, sim, com a necessidade de se preservar alguma vida. Esse homem e essa ameixeira são apenas dois traços diante da minha janela, disso não há dúvida. Mas eles também sonham juntos, talvez com uma intersecção, um ponto onde seiva e sangue se encontrem e misturem, engrossando ainda mais a violenta correnteza das coisas.

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