Durante anos, minha filha e eu, a caminho da escolinha, observamos um mesmo formigueiro. Antes da chegada do frio, as formigas se enfileiravam junto ao muro da Federação Espírita e passavam meses dobrando a esquina da Cabral com a Saldanha, carregando folhas e pétalas. Numa correição, imagino, as confusões são raras, e por isso, a cada outono, os trabalhos se repetiam, eficientes. Mas lembro que uma vez flagramos um grupo de cortadeiras levando pequenas estrelas prateadas, de papel, para um buraco no chão.
Apontei o engano para minha filha, que, do jeito dela, logo me fez perceber que desconheço tanto as rotinas subterrâneas quanto os propósitos estéticos dos insetos. A correição estrelada, afinal, podia ter uma explicação que me ultrapassava. E até hoje me pego pensando no uso que as formigas podem fazer das estrelas.
Entre nós, reparem, o lixo é sempre excessivo e a grana, insuficiente
Bem, aqui vai uma platitude, me perdoem: tudo é relativo. Assim, para as cortadeiras, também eu devia ter os meus mistérios — o gigante que ia e vinha de locais remotos, rebocando uma menina. Para elas, quem sabe, minha filha era minha folha, meu suprimento de energia renovável para os tempos ruins.
Mas, pensando bem, tudo é carga. Naquele velho caminho da escolinha, quantos casais não vi rolarem suas pedras na ladeira da Cabral, um namorado sustentando as expectativas do outro, sem cansaço aparente, até a noite em que este peso lhes parecer finalmente intolerável? Quantos cães puxando seus homens, e quantos homens puxando seus cães, essas máquinas quadrúpedes de subjetividade, exigindo de nós tanto amor e atenção quanto nossos deuses, bebês de colo ou pais envelhecidos.
Tudo é carga. No trânsito, os carros, os ônibus, as carretas e os táxis rodam cheios de estresse e esperança. Bicicletas abastecem a aridez dos escritórios com toneladas de água mineral. E, à margem de tudo, os carrinheiros vão puxando seus riquixás customizados, cujo único passageiro é a agonia de seu condutor. Papelão, plástico, isopor, lata, uma infinita carga de lixo a se transformar em dinheiro curto, e de novo em lixo, e mais uma vez em grana. Entre nós, reparem, o lixo é sempre excessivo e a grana, insuficiente.
E mesmo quem vive a céu aberto anda carregado. Alguns até arranjam um carrinho de supermercado que lhes sirva de armário, biblioteca, despensa, adega. No meio de tantas trouxas e de um ou outro livro, há também uma bola, uma garrafa, um colchonete, um travesseiro, um pacote de bolachas. Não moram na rua: antes, fazem dela um acampamento, uma comunidade móvel, de vidas que se desmancham e reerguem diariamente, não ao redor do fogo, mas dentro dele.
Dia desses, na Galeria Andrade, encontrei um homem puxando um avião de brinquedo, feito de ferro-velho. Parecia um desses heróis ambíguos de faroeste, um tipo de cavaleiro solitário, percorrendo a rua principal de uma cidade estranha. A diferença é que o povo, à porta das lojas, se importava mais com o cavalo atrás dele, levado por uma cordinha, do que com o próprio forasteiro. E nem podia ser de outro modo: aquela nave artesanal e enferrujada era tão atraente que me impediu de fixar, na memória, a aparência do piloto. De seus trajes, traços, cabelos e olhos, não sobrou nada. E percebi que, às vezes, o que nos define, mais que nós mesmos, é a carga que nos coube.
Pensei, então, na minha filha. Há duas semanas, no caminho de sua nova escola, um mendigo que sempre encontramos na Vicente Machado — sem bagagem visível — perguntou a ela se não estava cansada. Devolvi a pergunta, mesmo sabendo que não era para mim: cansada de quê?
“De tanto carregar esse pai”, disse o cara, se preparando para levitar.