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Enfim me mudei. Troquei a ladeira descendente da Ébano pela ascendente da Amintas. Sobrevivemos. Só minha filha mais velha é que, a princípio, reagiu mal, fantasiou uma experiência de quase morte. Recebeu a notícia da mudança como uma ordem de despejo, uma arbitrariedade dos pais, e se rendeu a uma espécie de luto pela casa onde cresceu e viu nascer a irmãzinha. Nem quis ver o antigo quarto sem móveis. Para ela, nosso apartamento velho, hoje, não é nada além de uma lápide para a sua primeira infância.

Ainda bem que as crianças, apesar de tenderem ao conservadorismo, estão sempre mudando, precisando de sapatos maiores e calças mais compridas, adaptando-se ao encolhimento do mundo. Por isso, a tristeza de minha filha foi breve. Assim que chegamos ao novo endereço, ela reparou na tela fachadeira, longa e branca, estendida nos fundos do edifício em obras, e começou a rir: “Pai, mudamos para um prédio vestido de noiva”.

Não escuto mais as brigas e lamentações que sobem da Ébano e da Cruz Machado, e nem por isso durmo melhor

Sim, este é um prédio carregado de expectativas, e toda expectativa é prenhe de inocências. Minha filha sabe que sou como ela, e que carrego minhas saudades, embora desde menino eu tente me enganar, achando que serão compensadas. Perdi meu terraço, minha gávea na Boca Maldita, e a companhia consoladora de meus vizinhos urubus. Mas ganhei uma vista panorâmica do Passeio Público e de seu ninhal de garças e socós. Aliás, aqui, quase no Alto da XV, até agora não vi um urubu sequer. Em compensação, já fiz contato com um casal de falcões-de-coleira que voam, toda manhã, das antenas do prédio em frente até a soleira de minha sala. Decerto me acham um intruso, e tudo bem, não sou homem de discutir com falcões.

À noite, deixei de ouvir gritos de socorro. Não escuto mais as brigas e lamentações que sobem da Ébano e da Cruz Machado, e nem por isso durmo melhor. Aqui na Amintas a voz humana parece não se propagar no escuro, substituída pelos motores e pelas sirenes. Tudo se comunica na língua dos carros, das viaturas e ambulâncias. Só a partir da uma, quando as motos se aquietam, é que pode reinar, fantasmagórico, o buzinaço das aves noturnas do Passeio.

Minhas filhas trocaram de escola e nossos caminhos também mudaram. Neles, por ora, tudo desperta em nós uma vaga sensação de impermanência. O Cemitério Luterano, o Santuário Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Capela das Velas, o Hospital de Clínicas e os degraus da ponte da Ivo Leão, que ainda não sei se tem nome. E até o necrotério do HC, onde alguém achou adequado pichar uma cara sorridente de língua de fora, um par de cruzes no lugar dos olhos.

E a Pracinha do Amor? É o que têm me perguntado os amigos. Bem, há meses eu já a vinha evitando, temendo a dor deste rompimento entre nós. Dela, sentirei falta. Por isso, do alto deste prédio vestido de noiva, ainda lanço um olhar desconfiado ao Largo Bittencourt. É noite, e o povo lá embaixo se junta sob a luz negra de uma carrocinha de cachorro-quente. Sim, é a velha fogueira ao redor da qual a humanidade evoluiu, e onde arderam as primeiras crônicas.

Assim, abro a vidraça e atiro, a quem interessar possa, o meu buquê meio murcho de esperanças.

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