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luis henrique pellanda

Ver os gols

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Aconteceu numa segunda-feira. Mas, para dar um caráter factual a esta crônica, digamos que tenha sido ontem. Faminto, o povo se espalhava pelas lanchonetes do Centro. Saí da Galeria Andrade e, ao cruzar a Riachuelo, um cara me puxou o braço. Sua expressão era séria, e tinha alguma urgência na voz. Primeiro, ele me comunicou as horas: era quase meio-dia. Depois, ordenou: “Vá pra casa, não perca tempo”. Respondi que deixasse comigo, eu já estava indo, mas não resisti e perguntei a ele o porquê daquela advertência. Sucinto, esclareceu: “É hora de ver os gols”.

Nunca encontrei palavra, dentro ou fora da literatura, que definisse um gol

Agradeci a lembrança e fui para casa. Quando um doido manda, em geral obedeço. Vi os gols na tevê, só tomando o cuidado de assisti-los sem o áudio, como prefiro fazer. Era hora de almoçar, sim, e a coincidência entre estes dois horários, o de comer e o de ver os gols do dia anterior, sempre me fascinou. Para o Paulo Mendes Campos, por exemplo, o gol era um artigo necessário — mas não como a arte, inútil ou não, nos seria necessária. Para ele, gol era alimento, era o “pão do povo”. Já o Drummond via no estufamento das redes uma “grande ilusão”, quem sabe se a representação plástica, no fundo inexplicável, de nossas emoções mais primitivas, a implosão simbólica das frustrações masculinas, a beleza a nossos pés?

De minha parte, nunca encontrei palavra, dentro ou fora da literatura, que definisse um gol. E olhem que já fui muito solicitado nessa área. Quando criança, jogava bola com um guri da minha idade — botemos aí uns dez anos — que era simplesmente incapaz de compreender não só os objetivos do futebol, mas também a sua graça infantil, o seu poder de enfeitiçamento. E essa lacuna na lógica das coisas o paralisava. Notem que não estou falando de alguém que não gostava do esporte; falo de um menino inviável, um solitário original.

Jogávamos numa ruazinha de pedra e pó, onde nunca passavam carros. Não havia linhas de fundo ou laterais, apenas aquelas típicas balizas de tijolo, a cada jogador cumprindo defendê-las a qualquer custo, embora o fundamental, claro, fosse marcar gols.

Meu adversário, no entanto, mal se mexia em campo. Partida após partida, sua postura era de perplexidade. Eu metia gol atrás de gol, sem me importar com sua imobilidade filosófica, e comemorava aos urros, tentando extrair, daqueles sucessos, algum sentido maior. Meu rival, porém, se mantinha impassível, não se deixava abater nem ferir, absorto em sua missão de compreender o mundo.

Não esqueço seus olhos azuis: olhavam para mim, jamais para a bola, este brinquedo essencial do homem (novamente cito Paulo Mendes Campos). Para aquele menino, a bola valia menos que os furos dos tijolos que roubávamos na olaria ali perto. Ele me perguntava por que era tão importante fazer gols, e eu dizia o óbvio: “Pra ganhar o jogo, ora”. Mas não, as vitórias não lhe interessavam.

Anos depois, aquele menino matou o pai a facadas. Foi preso e, segundo me contaram, assassinado. Nunca entendi o que houve com ele, perdemos o contato na adolescência. Mas me recordo de tê-lo visto na tevê, dando uma entrevista em um programa policial. Não respondia a nenhuma das perguntas que o repórter lhe fazia, somente olhava os próprios pés. Mas seu rosto lívido continuava a nos enviar uma mensagem de aturdimento. Sim, era o mesmo piá a quem a bola era invisível —e ele ainda tentava enxergá-la.

Em outra emissora, no mesmo horário, outros meninos corriam pelo Brasil, riscando gramados mais ou menos verdes. Lembro que, atento às panelas no fogo, abaixei o volume e mudei de canal, para ver os gols. De rodada em rodada, afinal, é que vamos vivendo.

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