| Foto: Felipe Lima

A tia vem nos visitar. Entre uma visita e outra, intervalos de muitos anos. Por acaso, me volto para onde ela está sentada, vendo tevê, e levo um susto: mãos cruzadas descansando sobre a barriga, ela batuca os polegares um contra o outro como meu pai fazia. Eles não convivem há décadas, mas mantêm os mesmos gestos. Deve ser a força da genética, concluo (e penso que tenho que ser mais compreensiva com meu pai, que, afinal, mistura em seu comportamento hábitos, gestos e pensamentos que talvez sejam impossíveis de controlar).

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Anos mais tarde, pai e tia já mortos, levo outro susto: percebo que eu estou movendo os polegares daquela forma. Dessa vez penso em quanto de mim é herdado e, portanto, independe dos caminhos que escolhi para minha vida e do que quero ser.

Conta um amigo de 70 e poucos anos que ele e os irmãos estão ficando a cara do pai. A idade está fazendo os três mais parecidos entre si e assustadoramente semelhantes ao senhor que os gerou.

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Parece que não tem como escapar: mais cedo ou mais tarde, nosso vínculo com quem nos criou estará estampado no nosso rosto, vai se expressar nos nossos gestos e, provavelmente, na forma como agimos. Que bela ironia...

Ironia porque crescer, afinal, não é deixar de ser a criança que nossos pais moldaram e se transformar na pessoa que queremos ser? Ou, ao menos, transformar-se em uma pessoa que reflita no corpo e na vida as nossas convicções? Deve ser por isso que, a partir da adolescência, muitos de nós repudiamos o pai e a mãe (ou um dos dois) como modelo. Pode ser um repúdio parcial: implicanciazinhas, vontade de ir morar longe, de namorar quem eles criticam, de seguir a profissão que eles desaconselham. É natural e saudável esse afastamento – se a genética e o ambiente são tão fortes que nos modelam o corpo e o pensamento para o resto da vida, seríamos eternos clonezinhos caso não reagíssemos contra a herança familiar em alguma altura da vida para tentar ser algo novo.

(O curioso é que às vezes a reação é tão forte que acaba por orientar a vida do sujeito. O medo de repetir aquilo que entende como maldição familiar não lhe sai da cabeça e, sem se dar conta, vive de forma a fugir dela, o que não deixa de ser uma forma de limitar a si próprio.)

Parece que aos 70 até os mais radicais entre nós vão descobrir que não são tão originais como gostariam. Mas pior seria se não nos animássemos a abrir espaço para alguma coisa nova, construída por nós mesmos. Em se tratando de seres humanos não existem cópias fiéis, só cópias mal acabadas.

marleth@gazetadopovo.com.br

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