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Marleth Silva

A ficção científica aqui e agora

 | Felipe Lima
(Foto: Felipe Lima)

Meu cronista favorecido, o português Miguel Esteves Cardoso, conta no jornal O Público que fez duas sessões de oito horas em frente à tevê para assistir a uma série dinamarquesa, Arvingerne. Dezesseis horas, ao longo de dois dias, sentado em frente à tevê! Me dói o ciático só de pensar. Mas entendo a compulsão do Miguel Esteves porque sou fã das séries escandinavas e britânicas, sempre filmadas em cenários que parecem saídos de um romance de Charlotte Brontë, com ravinas, promontórios e charnecas, com crimes motivados não por ganância e dinheiro, mas por perversões.

A compulsão, portanto, não me surpreende. Já a oferta gigantesca de instrumentos para passar o tempo que está a nossa disposição, esta me inquieta. São games que prendem os jogadores por horas, sem piscar, sem comer, sem ir ao banheiro; séries de tevê que incitam a audiência a assistir a toda uma temporada em um único dia, sem tirar o traseiro do sofá; aplicativos que prendem os olhos dos usuários no celular e os alienam do mundo ao redor. É a indústria da distração, formalmente chamada de indústria do entretenimento, que gera empregos e impostos, que explora tudo que a tecnologia oferece e que tem, sim, grandes momentos. Mas também induz à perda de tempo.

A definição do que é perda de tempo rende pano para manga

A definição do que é perda de tempo rende pano para manga. O que me parece óbvio é que uma atividade de lazer que interfere em outras atividades é perigosa. Como o sujeito que vê vídeos bobos no ambiente de trabalho (comportamento que se tornou uma praga nos escritórios e repartições) ou olha insistentemente no celular enquanto conversa com amigos, como se esperasse a qualquer momento a mensagem de Trump avisando que enviou drones para atacar Pequim.

Ler romances, contos, poesia é uma atividade mais útil ou mais nobre que as demais formas de distração? Grudada que estou nos livros da Elena Ferrante, percebo que minha compulsão é da mesma família que a dos que “precisam” assistir a dez episódios de uma série na mesma tarde. Ler, sabemos, desenvolve habilidades que envolvem raciocínio e o uso das palavras. Independentemente do que se aprende com o conteúdo, o processo em si de leitura tem sua utilidade, mas principalmente é uma atividade prazerosa.

Prazer é a palavra-chave que se esconde, subterrânea, sob nossas distrações. É o prazer fácil que buscamos. Ler é fonte de prazer, mas também exige um esforço mental que ver um episódio todo construído para ser viciante não exige. Isso é um mérito?

O que move meus questionamentos em relação ao tempo dedicado ao entretenimento é o medo da manipulação, de passar parte da vida como criaturas inofensivas e abobadas – zumbis? –, cheias de opinião e de informações, mas viciadas em atividades que nem pacificam a mente nem a exercitam; no máximo, a excitam. Por isso a série Black Mirror me incomodou a ponto de neutralizar o efeito viciante que poderia ter tido, já que me agradou. Cada episódio é um conto sobre nosso futuro regido pelo uso de equipamentos pessoais, como o celular. Me lembrou Ray Bradbury, de quem sou fã, porém é bem mais assustador porque quase todas as tecnologias em torno das quais as histórias giram já estão disponíveis. É perturbador.

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