Cerca de 50 homens de cada lado. Homens preparados para lutar, para matar. Vindos de lugares diferentes. O que eles têm em comum é que são loucos por futebol. O clima deveria ser natalino, mas as circunstâncias os colocaram em campos opostos. O lugar onde se encontram é terra de ninguém. Se aqueles guerreiros forem seguir as ordens de seus líderes, vão se matar. O apito soa em algum lugar. O que eles fazem?
Eles se divertem com a bola improvisada e chutam e brincam de marcar gols e de dar passes e de driblar. Eles são soldados alemães, de um lado, e soldados ingleses, do outro. Ninguém perde, todos ganham. Depois de uma meia hora de brincadeira são convocados a voltar para as trincheiras. Era 25 de dezembro de 1915 e a Primeira Guerra Mundial ainda iria matar a maioria deles. Mas, naquela improvável confraternização de Natal, eles foram felizes.
Quem deu a ordem para a brincadeira acabar foi o major britânico, que ordenou o retorno da tropa para a trincheira lembrando, aos gritos, que estavam lá para matar os alemães, não para fazer amizade com eles. Ele usou uma palavra bem mais forte que "alemães".
Não há registros oficiais dessa partida, mas houve relatos dos participantes. A "trégua de 1915" está nos livros de História, não é um conto de Natal. Um dos boleiros acabou conhecido por ter vivido muito. Viveu para contar. E por ter feito um relato singelo daquele Natal. Acho a forma como ele se manifestou, já centenário e vivendo em uma casa de repouso, encantadora.
O inglês Bertie Felstead era um rapazola lançado pela guerra em território francês para enfrentar os alemães como membro do corpo de fuzileiros. Ele se juntou ao grupo que saiu da vala cavada no chão e se aproximou do inimigo para a pelada improvisada. Não foi uma partida, contou ele, afinal eram homens demais no mesmo campo. Qual campo? Aquela faixa de terra entre as trincheiras, a chamada terra de ninguém, onde nenhum soldado se arriscava a andar porque isso significava se colocar no alvo do inimigo. Comentário de Bertie sobre os adversários: "Os alemães foram legais".
A Primeira Guerra Mundial começou em 1914 e até acabar, em 1918, matou 16 milhões de pessoas. Ainda teve um epílogo, a Segunda Guerra Mundial, que arrebentou cerca de 20 anos depois e matou outros 60 milhões de pessoas. Naquele Natal de 1915, houve tréguas improvisadas e informais ao longo das frentes de batalha. Bertie Felstead se lembrava de que, na noite de 24 de dezembro, ele e seus colegas ouviram canções de Natal vindo do lado alemão e responderam cantando também. Ao longo do dia 25, soldados dos dois lados se arriscaram a sair da trincheira e, quando os inimigos se encontravam, havia apertos de mão. Trocaram pequenos presentes, como alimento e jornais velhos. Isso teria acontecido em vários pontos da linha de frente. Foi assim que surgiu a pelada inesquecível. Ao longo de 1915 os soldados viram tanta carnificina que não lhes restou espírito para novas tréguas. Não haveria mais intervalos na "guerra para acabar com todas as guerras".
Bertie foi o último "boleiro" daquela pelada. Morreu em 2001, aos 106 anos. Não passou de soldado raso. Seguiu a vida como operário. Referiu-se a si mesmo como "um homem médio". Seu obituário foi publicado pelos grandes jornais do mundo por ter jogado aquela partida, aquela ingênua rebelião do futebol contra a violência. Leitura altamente recomendável para alguns grupos de torcedores brasileiros.
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