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O Brasil é refém do carnaval. Festa grande, com décadas de histórias, "o maior show da Terra", feriadão: com tudo isso junto fica impossível escapar. O carnaval vai nos cercando como uma tropa de choque. Para usar uma metáfora mais apropriada, vai nos rodeando como uma bateria de escola de samba, daquelas com centenas de componentes bem ensaiados. Não dá para ignorar o som, o corpo se mexe queira você ou não.

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Há uma grande festa por aí e é como se tivéssemos de decidir se vamos participar. Na realidade, a maioria de nós nem é convidada. Não tem um bloco animado passando na nossa porta nem um amigo nos chamando para colar lantejoulas na fantasia. O carnaval é uma festa nacional, mas muito tímida na maioria dos municípios brasileiros. Ainda mais nos últimos 20 anos, com o quase desaparecimento dos bailes de clube.

Dependendo do lugar onde se mora, é fácil não ir à festa – difícil é achar uma festa boa. Estou levando em conta que mesmo quem tem simpatia pela folia pode não querer "pular até cair". Recolher-se à normalidade de um fim de semana prolongado é fácil se você está em Curitiba, por exemplo. Como a minha cidade, há milhares de outras onde pouco se ouve o pum-pum-paticumbum-prugurundum. Um pouco de barulho sempre há. Ainda não ouvi falar de um município que tenha sido declarado território livre de ziriguidum.

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A presença massacrante do carnaval se deve em boa parte à televisão. Há anos os canais abertos nos sufocam a partir de 1.º de janeiro com chamadas rebolantes para a grande festa. Nas coberturas jornalísticas é difícil ignorar um evento que mobiliza várias das grandes capitais do país, em alguns casos com milhões de pessoas indo às ruas dançar. Até um monge budista concordaria que é um fenômeno e tanto e que seria estranho a imprensa ignorá-lo. Já as "chamadas rebolantes", estas são apenas uma forma de publicidade em que o carnaval é o produto. São repetitivas e chatas, infinitamente chatas.

Na Quarta-Feira de Cinzas de 1960, Carlos Drummond de Andrade, vivendo no Rio de Janeiro, descreveu em uma crônica o que ele chamou de "uma outra e cifrada folia", que vinha a ser aproveitar a anomalia dos dias de carnaval dentro de casa, na companhia do gato Crispim. Para isso, explicou, era preciso "não ligar televisão, esquecer-se de rádio, deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto". Não era difícil "não ligar televisão" em 1960, quando havia pouco mais de 1,5 milhão de aparelhos no Brasil (um deles na casa de Drummond). Segue-se uma descrição preciosa do poeta vagando pela casa, olhando os livros na estante, comendo pratos improvisados (a cozinheira está de folga), aceitando a solidão, desfrutando daqueles dias sonolentos como "o instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som". Ponto para o carnaval, que inspirou ao poeta esta imagem tão evocativa.

Inspiração, está aí algo que devemos ao carnaval. Ele está por trás de velhas marchinhas que ainda nos fazem rir e dos grandes sambas-enredo, de versos deliciosos como o do Império Serrano, de 1964 ("Vejam esta maravilha de cenário / é um episódio relicário / que o artista num sonho genial / escolheu para este carnaval"), os da União da Ilha do Governador em 1978 ("Como vai ser o meu destino / Já desfolhei o malmequer / primeiro amor de um menino") e em 1982 ("Será que eu serei o dono dessa festa / Um rei no meio de uma gente tão modesta", e da Imperatriz Leopoldinense em 1989 ("Liberdade, liberdade / abre as asas sobre nós / e que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz").

É uma poesia que sobrevive bem à Quarta-Feira de Cinzas.

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