Anos atrás, minha tia encontrou uma velha conhecida enquanto caminhava pela cidadezinha onde ambas moravam. Seguindo o roteiro da cordialidade, a tia perguntou pelos filhos da amiga. Ouviu que Fulana casou, que Beltrana se mudou. E o filho, aquele que ocupava um cargo no Legislativo? “Ah, depois que entrou para a política, ele vai tão bem...” – respondeu a vizinha. E passou a descrever os acréscimos que seu menino vinha fazendo no patrimônio.
A santa mãezinha em questão não se deu conta do que estava falando. Minha tia ficou desconcertada, muda, tonta. Saiu dali caminhando torto pelas ruas de terra roxa.
Quando nem as mães nos salvam, o que resta? Talvez o medo de ser pego, da vergonha pública
O filho espertalhão da vizinha foi reeleito várias vezes para vários cargos e continua aí. Se não cito o nome dele é porque não tenho testemunhas para me socorrer no caso de o indigníssimo se voltar contra mim. Às vezes o vejo na tevê e lembro da mãe dele, aquela que não sabia de nada. Quero crer que nela não houvesse malícia porque, se houvesse, não teria revelado as prováveis malversações do filho ali, no meio da rua. Ou será que o orgulho de ver o rapaz juntando “patrimônio” era tamanho que a tornou descuidada ao falar?
Tem situações piores e encontrei um exemplo disso recentemente. A notícia era de que um senador guarda dinheiro em um paraíso fiscal, fato apurado pela Polícia Federal anos atrás. A conta em um banco de Liechtenstein está no nome da mãe dele, que assinou todos os papéis. Justificativa da devotada mãezinha: iria mandar para o paraíso fiscal o dinheiro que bancaria os estudos dos netos. Além de agir ilegalmente (a conta nunca foi declarada à Receita Federal), a mãe do senador deu um tapa na cara dos brasileiros que se ajeitam como podem para dar alguma educação aos filhos. Para o padrão dela, educação se faz com dinheiro escondido em paraíso fiscal.
Diante de um quadro tão desconcertante, recorramos à filosofia. Fui rever um programa exibido na TV Cultura, o ótimo CPFL Cultura, com o filósofo Mario Sergio Cortella. Ele é de Londrina, mas ensina na PUC-SP. Cortella se referiu às mães como o “fundo matricial da vergonha”. Em outras palavras, é com elas que aprendemos a sentir vergonha de alguns de nossos atos. “Seja sua mãe quem for ou quem foi, se a pessoa que te trouxe ao mundo ficar com vergonha de ter te parido é porque você não presta”, resumiu.
Não foi o caso das duas senhoras que citei acima: uma não entendia o que o filho andava aprontando (a remuneração dos deputados é boa, mas não é suficiente para que aumentem o patrimônio a olhos vistos); a outra devia saber muito bem que a família lidava com dinheiro sujo e por isso se prontificou a enviá-lo para Liechtenstein. O filho dela não sentiu vergonha porque a mãe estava de acordo.
Se ele não sente vergonha diante da mãe, não sentirá diante de um país inteiro.
Quando nem as mães nos salvam, o que resta? Talvez o medo de ser pego, da vergonha pública. Cortella faz uma citação, que empresto aqui para resumir este raciocínio. É um conselho de Immanuel Kant que, se seguido à risca, nos livraria de muitos problemas: “Tudo que não puder contar como fez, não faça”.