| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Em busca de um alívio para o resfriado, me deparo no balcão da farmácia com uma conversa animada entre dois clientes e dois atendentes. Um dos clientes não está feliz com a presença do guardador de carros que toda noite se posta na calçada, abordando os motoristas. Queixa-se da presença dele, ano após ano, oferecendo-se para ajudar quem não quer ajuda. Os guardadores não arredam pé daquele trecho da Manoel Ribas que eu chamo de “centrinho” de Santa Felicidade, ali onde ficam as agências bancárias, a igreja matriz, as farmácias e outros comércios. São homens jovens, que os moradores dizem ser usuários de crack. Baseada em conversas deles que entreouvi, acredito que sejam mesmo.

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Se todo mundo que sofre uma desilusão amorosa abandonasse tudo para viver na rua, as casas estariam vazias

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O guardador que é tema da conversa da farmácia é uma exceção. É mais velho que os outros, mas sua idade é desconhecida. Por causa das roupas largas, uma postura que lembra o corcunda de Notre Dame, a cabeça sempre inclinada e o olhar de soslaio, não dá para saber exatamente quantos anos tem. A surpresa, para mim, é descobrir que a vizinhaça conhece (ou inventou) a biografia dele. E é uma biografia romântica! De um romantismo digno de ponto de exclamação. Segundo apurei na farmácia, trata-se de um italiano que perdeu o rumo na vida por causa de uma desilusão amorosa. Um vero italiano que atravessou o Atlântico para se perder entre os oriundi que vivem às margens do Rio Uvú.

Esta informação é dada, ali na farmácia, com ar de pena e de crença. O cliente a repete várias vezes e parece acreditar totalmente nela. “Ele ficou assim por amor”, diz o homem com ar consternado. Por “assim” ele quer dizer sem dignidade, sem ambição. Diante de minha descrença insiste que foi o sofrimento causado por uma mulher que acabou com Giuseppe – codinome que vou usar aqui para contar a história desse homem que, afinal, não me deu autorização para escrever sobre ele.

“Se todo mundo que sofre uma desilusão amorosa abandonasse tudo para viver na rua, as casas estariam vazias”, provoco. Ninguém embarca no meu ceticismo. Surgem novas informações. Não é um caso de alcoolismo, asseguram. Giuseppe ainda teria dinheiro e fica na rua porque quer. Mora em uma casa a poucos metros dali, não é um sem-teto. Sabem me explicar direitinho qual é a casa dele, ali no centrinho. Era comerciante, parece que dono de uma mercearia. Teria sido um caso de traição da esposa – aqui o homem que conta esta história demonstra insegurança. “Teria sido”, ele repete, deixando transparecer que é uma suposição que torna pública como se fosse a mais pura verdade. O farmacêutico tem detalhes mais atualizados: Giuseppe confidenciou a alguém que atualmente está envolvido com duas mulheres ao mesmo tempo, uma delas a faxineira que aparece uma vez por semana para limpar sua casa. O Quasímodo de Santa Felicidade tem duas Esmeraldas. Parece que sou a única incrédula nesta noite fria.

Quando saio da farmácia lá está Giuseppe, oferecendo-se para ajudar os motoristas a manobrar. Como de costume, me aborda com um buona notte. Prestando mais atenção, desconfio que sua cabeça tombando para um lado e o andar arrastado sejam resultado de um AVC e não de um coração partido. As roupas velhas e a ocupação miserável que rende alguns trocados podem ser reflexo do isolamento e da falta de motivação. Não tenho como saber, não é fácil falar com o italiano. Tive a impressão de ver espanto em seu rosto quando comentei sobre o frio da noite para puxar conversa. Provavelmente por estar acostumado a repetir o mesmo roteiro várias vezes por noite, há anos, trocando raras palavras com pessoas que não querem interagir, Giuseppe não estica a conversa. Me dá seu escandaloso buona notte e vai ziguezaguear entre os carros da Manoel Ribas.