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Marleth Silva

Como sei que a minha gata não está brincando comigo?

 | Ilustração: Felipe Lima
(Foto: Ilustração: Felipe Lima)

Não resisto e leio mais um livro sobre gatos. Neste agora, um bichano amarelo é encontrado por um rapaz inglês que tenta se livrar da dependência química enquanto ganha a vida cantando nas ruas. James Bowen é miserável, mas cuida do gato ferido. O gato começa a segui-lo; até mesmo dentro de um ônibus. James o adota e o carrega consigo por toda a Londres. A presença do animal amistoso e bonito provoca uma mudança significativa: como músico de rua e ex-mendigo, o rapaz está acostumado a não ser visto por ninguém. As pessoas evitam fazer contato, mesmo visual, com um homem na condição dele, por medo, por piedade, por desconforto ou por desprezo. Com o gato, as pessoas olham e se aproximam. James é obrigado a interagir e sai do lugar-nenhum onde vivia. Isso e mais o carinho pelo bichinho ajudam no período difícil de desintoxicação. O relato de James Bowen está no livro Um Gato de Rua Chamado Bob, da editora Nova Conceito.

Já li e ouvi outras histórias semelhantes envolvendo gatos e cães. Me chama atenção o fato de as pessoas envolvidas se mostrarem convencidas de que os animais as compreendem e se importam com elas. Veem neles uma percepção e uma fineza de espírito normalmente esperadas apenas de humanos.

O filósofo francês Montaigne fez parte deste grupo de pessoas. Entrou nele através da observação do mundo e também do exercício da alteridade, algo em que era um especialista. Uma de suas frases famosas é: "Quando brinco com a minha gata, como sei que ela não está brincando comigo?", que vem a ser também o título de um livro sobre ele, do inglês Saul Frampton (Editora Difel).

Montaigne queria ver o mundo pelo ponto de vista de outras pessoas ou animais. Partia do pressuposto de que acreditamos que nossos hábitos sejam uma regra universal, quando são apenas isso – hábitos de uma "tribo", cultura local.

Por isso colecionava exemplos de comportamentos de outras culturas que não a europeia para ter a oportunidade de ver o mundo por outros olhos. Foi assim que Montaigne se interessou pelos três índios tupinambás que exploradores franceses levaram para a corte francesa em 1562. Montaigne tentou tirar deles algumas impressões sobre a França e registrou o que os intrigava. Primeiro: os brasileiros não entendiam por que os soldados se submetiam ao comando de uma criatura mais frágil que eles (o rei Carlos IX tinha 12 anos). Segundo: por que os pobres não se revoltavam contra os muito ricos? O filósofo ficou impressionado. Os índios lhe deram a chance de ver a realidade de seu país com novos olhos.

Em relação à gata, Montaigne indagava se ela não o via como um brinquedo ou como um companheiro de brincadeira (que era como "ele" a via). Aceitava, portanto, a possibilidade de que o felino não fosse uma criatura muito simplória, que só reage a instintos.

O filósofo tentou ver o mundo pelos olhos de sua gata e de outros animais. Se convenceu de que eles se comunicavam e isso para ele foi uma prova de que a comunicação mais importante não precisa necessariamente de palavras. Parece a constatação de algo simples, mas tinha um grande significado.

O uso das palavras, principalmente da palavra escrita, confirmava para os contemporâneos de Montaigne que os humanos eram superiores aos animais e que havia humanos superiores a outros humanos (poucas pessoas sabiam ler e escrever no início do século 16). Portanto, ele enveredava pela contramão do pensamento que tomaria força nos anos seguintes, com o avanço da ciência.

Pois cá estamos, 500 anos depois de Montaigne, e pessoas que convivem com animais continuam relatando a capacidade que eles demonstram de se relacionar, de se comunicar, de se importar. Enquanto isso, nosso conhecimento nesse campo não evoluiu muito, creio que porque não convém a nós, carnívoros caprichosos, senhores da Terra, ter muita empatia com a bicharada.

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Quanto aos livros, o de Saul Frampton é ótimo e recomendo a todos. Já o livro sobre Bob, o felino, só interessa para quem gosta muito de gatos, como eu.

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