Não resisto e leio mais um livro sobre gatos. Neste agora, um bichano amarelo é encontrado por um rapaz inglês que tenta se livrar da dependência química enquanto ganha a vida cantando nas ruas. James Bowen é miserável, mas cuida do gato ferido. O gato começa a segui-lo; até mesmo dentro de um ônibus. James o adota e o carrega consigo por toda a Londres. A presença do animal amistoso e bonito provoca uma mudança significativa: como músico de rua e ex-mendigo, o rapaz está acostumado a não ser visto por ninguém. As pessoas evitam fazer contato, mesmo visual, com um homem na condição dele, por medo, por piedade, por desconforto ou por desprezo. Com o gato, as pessoas olham e se aproximam. James é obrigado a interagir e sai do lugar-nenhum onde vivia. Isso e mais o carinho pelo bichinho ajudam no período difícil de desintoxicação. O relato de James Bowen está no livro Um Gato de Rua Chamado Bob, da editora Nova Conceito.
Já li e ouvi outras histórias semelhantes envolvendo gatos e cães. Me chama atenção o fato de as pessoas envolvidas se mostrarem convencidas de que os animais as compreendem e se importam com elas. Veem neles uma percepção e uma fineza de espírito normalmente esperadas apenas de humanos.
O filósofo francês Montaigne fez parte deste grupo de pessoas. Entrou nele através da observação do mundo e também do exercício da alteridade, algo em que era um especialista. Uma de suas frases famosas é: "Quando brinco com a minha gata, como sei que ela não está brincando comigo?", que vem a ser também o título de um livro sobre ele, do inglês Saul Frampton (Editora Difel).
Montaigne queria ver o mundo pelo ponto de vista de outras pessoas ou animais. Partia do pressuposto de que acreditamos que nossos hábitos sejam uma regra universal, quando são apenas isso hábitos de uma "tribo", cultura local.
Por isso colecionava exemplos de comportamentos de outras culturas que não a europeia para ter a oportunidade de ver o mundo por outros olhos. Foi assim que Montaigne se interessou pelos três índios tupinambás que exploradores franceses levaram para a corte francesa em 1562. Montaigne tentou tirar deles algumas impressões sobre a França e registrou o que os intrigava. Primeiro: os brasileiros não entendiam por que os soldados se submetiam ao comando de uma criatura mais frágil que eles (o rei Carlos IX tinha 12 anos). Segundo: por que os pobres não se revoltavam contra os muito ricos? O filósofo ficou impressionado. Os índios lhe deram a chance de ver a realidade de seu país com novos olhos.
Em relação à gata, Montaigne indagava se ela não o via como um brinquedo ou como um companheiro de brincadeira (que era como "ele" a via). Aceitava, portanto, a possibilidade de que o felino não fosse uma criatura muito simplória, que só reage a instintos.
O filósofo tentou ver o mundo pelos olhos de sua gata e de outros animais. Se convenceu de que eles se comunicavam e isso para ele foi uma prova de que a comunicação mais importante não precisa necessariamente de palavras. Parece a constatação de algo simples, mas tinha um grande significado.
O uso das palavras, principalmente da palavra escrita, confirmava para os contemporâneos de Montaigne que os humanos eram superiores aos animais e que havia humanos superiores a outros humanos (poucas pessoas sabiam ler e escrever no início do século 16). Portanto, ele enveredava pela contramão do pensamento que tomaria força nos anos seguintes, com o avanço da ciência.
Pois cá estamos, 500 anos depois de Montaigne, e pessoas que convivem com animais continuam relatando a capacidade que eles demonstram de se relacionar, de se comunicar, de se importar. Enquanto isso, nosso conhecimento nesse campo não evoluiu muito, creio que porque não convém a nós, carnívoros caprichosos, senhores da Terra, ter muita empatia com a bicharada.
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Quanto aos livros, o de Saul Frampton é ótimo e recomendo a todos. Já o livro sobre Bob, o felino, só interessa para quem gosta muito de gatos, como eu.