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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Era um almoço informal que reunia muitas pessoas de uma mesma família e um ou outro novato no grupo. Logo que cheguei, fui apresentado à anfitriã, uma simpática senhora de quase 100 anos. Agachei-me em frente ao sofá em que ela recebia os convidados. Ela me estendeu a mão e lançou a primeira pergunta:

— De que família você é?

Fiquei muda. Como assim? Que pergunta é essa? Que resposta ela espera?

Eu sou da família Silva — esta é a resposta correta. O problema é que ela não explica muito coisa. Eu sou da família Silva, assim como outros milhões de brasileiros e portugueses e moçambicanos e angolanos e uruguaios e até ingleses, galeses e indianos. Sou da família Silva, mas não da família do presidente Lula, nem parente do Ayrton Senna, nem do marechal Costa e Silva, nem do pintor espanhol Diego Rodríguez de Silva y Velázquez. Ou seja, a família Silva não existe.

Convenhamos, a pergunta que a gentil senhora me fez é esdrúxula. Para ela devia fazer sentido porque lá na Curitiba de sua juventude, nos anos 1920, Curitiba tinha 78.986 habitantes. Quando alguém se apresentava e dizia que se chamava von Donnersmark, entendia-se que era de uma família alemã. Se informasse que era Mastroianni, era italiano. E daí? Provavelmente isso significava algo, já que as "boas famílias" da época eram todas de origem portuguesa (e será que os Silva eram uma das "boas famílias"? Duvido.) O alemão, o italiano, o japonês eram recém-chegados que falavam mal o português e que trabalhavam duro para conseguir seu lugar ao sol. Como se sabe, trabalhar duro era coisa de pobre na América portuguesa. Talvez a elite local torcesse o nariz para esses sobrenomes estrangeiros que acompanhavam um aperto de mão calejada. Hoje em dia, desconfio que nem um sobrenome como Lampedusa chamaria a atenção. A não ser que sua interlocutora tenha 100 anos, claro.

Fazer parte de uma família gigantesca tem suas vantagens. Somos transparentes. Nosso nome não diz nada sobre nossas tragédias pessoais, não desperta curiosidade. Ninguém sabe de onde viemos. Não corremos o risco de atravessar períodos de decadência, em que as pessoas passam pelo mausoléu da família no Cemitério Municipal e dizem: "Essa família já foi poderosa, é nome de rua, e agora não é nada". Aliás, nem teremos mausoléu porque isso não combina com a transparência que nos cai tão bem. Isso tudo nos deixa mais livres para fazermos nossas besteiras ou atos de heroísmo sem muito alarde. Posso construir minha história a partir do nada e fazer com que acabe quando eu partir dessa para melhor sem deixar cobranças para meus filhos. Nós, os Silva, não temos pretensão de iniciar uma linhagem.

Tudo isso é muito bom, desde que não nos façam perguntas difíceis, como "de que família você é?". Aí, titubeamos. Ou colocamos uma expressão misteriosa no rosto e respondemos simplesmente "Silva" ou fazemos um acréscimo mais... informativo. Do tipo "Silva, do Portão". Ou: "Silva, do ramo que veio do Norte". E mudamos logo de assunto.

Marleth Silva é jornalista.

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