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O meu colega José Carlos Fernandes, que escreve neste espaço às sextas-feiras, fez ontem uma maldade involuntária comigo. Citou no texto sobre o Jesus Cristo do Bairro Novo aquela canção do Roberto Carlos que fala que "tudo que aqui ele deixou, não passou e vai sempre existir". Eu nem lembrava que a tal música existia. Pois depois que li o texto ela me voltou à memória de forma avassaladora e agora quando abro a boca, sai Roberto Carlos. Entre um pensamento e outro, lá vem o Roberto de braço dado com Jesus Cristo. Só faz uma hora que li o texto do Zé e nem eu aguento mais a musiquinha na minha cabeça – o que dirá meu filho, que ameaça passar a Páscoa fora de casa se eu não calar a boca.

Certamente só lembro da letra de O Homem porque eu a ouvi quando criança. Na infância, meu cérebro guardava informações de outra forma: eu decorava letras de música e poemas, guardava nomes de pessoas que via na televisão ou lia nos jornais que meu pai trazia para casa. Agora, processo a nova informação e depois ela parece desaparecer sem deixar vestígios. Deve ser um processo de seleção natural que acontece quando se vive cercado por muita informação. Por mais que eu goste de uma música, não sou capaz de decorar sua letra da forma que decorei um bolero cantado pela Ângela Maria, o Tango para Teresa.

A história é a seguinte: havia um circo instalado em um terreno nos fundos da minha casa e, para chamar a atenção do povo da cidade, a trupe deixava uns LPs tocarem quase o dia todo pelo alto-falante. Eu e minha irmã caçula, fechadinhas no quarto dos nossos pais, íamos ouvindo as frases e repetindo, até decorar o tango inteiro. Um tango! Pois até hoje lembro dele:

"Hoje, alguém pôs a rodar Um disco de GardelNo apartamento junto ao meuQue tristeza me deuEra todo o passado lindoA mocidade vindoNa parede a me dizerPara eu sofrer"

Não é que o tal Tango para Teresa fala de uma situação parecida com a que eu relatava no início do texto? Ao ouvir a música de Gardel, Ângela Maria se lembra da mocidade. Ao ouvir Roberto Carlos (ouvir mentalmente, por causa da provocação do José Carlos) me lembro da infância e de como minha memória funcionava de forma diferente.

Ao contrário da Ângela Maria, não sofro com a mudança a experiência. Me dou conta de que perdi (ou abandonei) a capacidade de receber com calma e curiosidade suficiente algo novo e de guardá-lo para sempre, inteiro, na minha memória. Desconfio que isso não é culpa do meu cérebro, da parte cinzenta, física (pelo menos, tenho a esperança de que não seja). É culpa do jeito que vivo – que vivemos, quase todos os adultos – , sempre pensando em várias coisas ao mesmo tempo, sempre com pressa. Sempre achando que precisamos saber mais. Sei mais, mas também preciso esquecer tamanha quantidade de coisas que, ao me dar conta disso, acabo por achar que tem algo errado comigo.

Decorar é uma palavra bonita. Mais bonita ainda nas expressões equivalentes do francês e do inglês, que deixam clara a origem do termo: apprendre par coeur e to know by heart(literalmente: saber pelo coração). O que eu aprendi na infância eu sei no coração. O que eu aprendi na correria da vida adulta o cérebro está tratando de arquivar com sua usual eficiência, que não me deixa lembrar de tudo ao mesmo tempo, nem que para isso algumas informações e sentimentos fiquem inacessíveis.

Para dar fim ao "tudo que aqui ele deixou" do Roberto Carlos, vou tentar decorar um samba do Cartola, Preciso me Encontrar. Será minha vingança contra o Zé Carlos:

"Quero assistir ao sol nascerVer as águas dos rios correrOuvir os pássaros cantarEu quero nascerQuero viver...Deixe-me irPreciso andarVou por aí a procurarRir prá não chorar."

Marleth Silva é jornalista.

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