No tempo em que eu era destemida, se passou o seguinte: era o dia 31 de dezembro de um ano qualquer do século passado. Saí de São Paulo, onde morava, e vim passar o feriado com a família em Curitiba. Mas fiquei devendo um texto para o Jornal do Brasil, onde eu trabalhava. Por isso, logo cedo, fui à empresa de um amigo para usar o computador e o fax.
Enquanto eu estava lá, uma quadrilha de assaltantes invadiu o escritório. Eu os vi entrar gritando e colocando as toucas para cobrir os rostos. Renderam todo mundo, nos mandaram deitar no chão, depois encostar na parede, depois mudar de sala. Desci uma escada com um sujeito me empurrando com uma pistola. “Rápido, rápido” – e ele cutucava minha coluna com o cano da arma. Na hora de colocar o dinheiro na sacola, como eles mandavam, o funcionário estava tão nervoso que as notas voavam para todo lado e isso irritava os bandidos. Me ofereci para ajudar. Eu estava calma, tão calma quanto uma pessoa que assiste à cena de roubo em um filme, sentadinha na sala de estar. Era como eu me sentia: como se estivesse acompanhando uma encenação.
A inocência é algo que não se recupera. Depois que ela se vai, você é outra pessoa
Quanto os assaltantes foram embora, alguns dos funcionários me disseram: “Como você pôde ficar tão calma?” Eu não sabia explicar, mas continuei calma. Depois do assalto, fui ao cabelereiro.
O que eu descobri aos poucos foi que toda a coragem e controle que eu tinha dentro de mim se esgotaram ali, durante aquele assalto. Conheci a violência na vida real e não dava mais para assisti-la como se assiste a um filme. A inocência é algo que não se recupera. Depois que ela se vai, você é outra pessoa.
Semanas depois começou uma série de episódios em que eu via assaltantes onde não havia nenhum. Via com detalhes porque eu captava o que estava acontecendo de forma distorcida. Uma manhã, muito cedo, cheguei ao trabalho, em um prédio de escritórios na Avenida Paulista, e me avisaram que faziam uma pequena obra no local e que eu teria de usar outra mesa, atrás de um biombo. Mal me sentei e começaram os ruídos, as vozes. Deviam ser os operários, mas para minha imaginação era uma quadrilha que invadia o local. Silêncio... Já renderam todo mundo. Algo caiu... Estão revirando os armários. O telefone tocou e ninguém atendeu... A secretária está sob a mira de armas. Alguém anda de um lado para outro... Estão vasculhando as outras salas e logo chegarão em mim. Eu lá, paralisada, escorregando na cadeira, a ponto de me esconder embaixo da mesa. Os passos se aproximam, pesados, é um homem, está vindo!
“Bom dia, a senhora pode voltar para a sua mesa. Já terminamos.”
Eu, muda, as mãos agarradas na cadeira. Só não gritei porque o grito não saiu da garganta. Descobri que, além de perder a coragem, eu perdia a voz nos momentos de susto.
Uns dois anos depois fui vítima de um sequestro-relâmpago também em São Paulo. Já não restava nenhum destemor em mim. Tremi tanto que quase não consegui dirigir. Os dois sujeitos, quase adolescentes, falavam uma língua que eu não entendia, com gírias que não faziam sentido. Só percebia a intenção pelo tom de ameaça na voz deles. É uma experiência infernal. Agora sigo vendo fantasmas de assaltantes, como tantos outros que passaram pelo mesmo que eu.