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Um amigo me sugere um texto sobre a velhice. Nele, o autor cita uma pesquisa que diz que depois dos 70 as pessoas têm poucos anos com qualidade de vida. Passam a maior parte desses últimos anos ou décadas às voltas com problemas de saúde que vão limitando a possibilidade de levarem uma existência plena. O texto termina com ele pedindo a Deus que o poupe dessa experiência.

Concordei com a argumentação do cronista, com sua constatação de que o eterno sonho humano de longevidade sem limite está equivocado. Afinal, o que conta é viver plenamente, não é? Quem nunca pensou: "Deus me livre de uma vida longa, mas limitada"?

Mas ficou em mim um certo desconforto. Faltam peças no meu quebra-cabeça. A primeira: a teoria do "Deus me livre..." não considera o que se passa na cabeça do velho. Será que ao perder o corpo jovem e começar a penar diariamente com limitações físicas, perde-se automaticamente a motivação para viver? Ou será que ela se sustenta nos sonhos que persistem, nas paixões novas ou velhas, no apego à vida e aos hábitos? Se não estou nessa fase da vida, não posso responder esta pergunta. Só posso olhar em volta em busca de resposta e aí encontro de tudo: idosos motivados, idosos infelizes, idosos com vidas incríveis, idosos que perderam a vida para uma doença, idosos maravilhosos.

Também não posso responder a outra pergunta que me ocorre (desculpe, leitor, se só registro dúvidas sem oferecer resposta clara – pelo menos, é uma atitude menos pretensiosa). Qual é o efeito da convivência com a velhice sobre os não-velhos, sobre a família e os amigos? Sei bem que em se tratando de idosos dependentes, a carga física e emocional sobre a família é tão grande que se transforma em sacrifício. Mas será que é só sacrifício? Será que não se ganha nada com essa convivência?

Imagine se aos 70 anos (a data-limite citada pelo artigo que meu amigo me indicou), o cérebro e o coração fizessem click e se auto-desligassem, em uma morte previsível e rápida, que pouparia cada um de nós das muitas perdas da idade avançada. Quase não veríamos mais o sofrimento causado pelo Alzheimer e pelo Parkinson (que, na maioria das vezes, se manifestam depois dos 70), pelas perdas auditivas, pelo desgaste ósseo, pelas mazelas de uma máquina consumida pelo uso. Seríamos como heróis de histórias em quadrinhos, invencíveis. Ou pelo menos acreditaríamos nisso até a hora do click. O click teria outro significado, claro. Não se diria sobre o falecido: "descansou". Esse consolo não teríamos mais. Teríamos o consolo de dizer: "não sofreu" e "não sofremos nós". Do sofrimento estamos sempre correndo, não estamos?

Em parte por respeito à dor de quem está vivendo um período difícil cuidando de um idoso doente e à dor dos velhos doentes ou solitários, vou resistir à tentação de concluir que os últimos anos dos outros nos ensinam algo. Não tenho todas as respostas e as peças do quebra-cabeça vão caindo nas minhas mãos pouco a pouco. Uma dessas peças encontro entre as páginas de um livro do Mario Quintana. O poeta (que escreveu até os 88 anos) fala de Leon Tolstoi, que fugiu de casa aos 82 anos. Fugiu da esposa, que o incomodava por causa de dinheiro – ele queria doar o que tinha, ela queria que ele deixasse como herança para ela. Tolstoi morreu durante a fuga, sentado no banco de uma estação de trem. Comentário de Quintana:

"Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade... Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!"

Não há nenhum vestígio de dó ou piedade nesses versos. Só bom-humor e admiração. Dois velhinhos maluquinhos, o Quintana e o Tolstoi. Dois velhinhos que viveram o suficiente para me inspirar esboços de respostas.

Marleth Silva é jornalista.

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