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Marleth Silva

Discutindo com os próprios neurônios

 | Ilustração: Felipe Lima
(Foto: Ilustração: Felipe Lima)

Em um fluxo ininterrupto, o diálogo prossegue. Com bons argumentos, ele se empenha em mostrar ao interlocutor aspectos que estavam sendo ignorados, tenta arejar o debate viciado, carregado de ideias prontas. Só que o interlocutor não existe, ou só existe na cabeça dele. Era mais uma daquelas discussões mentais que ele tem consigo mesmo. Funciona assim: ele imagina um interlocutor, alguém que gostaria de convencer sobre um dado ponto de vista ou que quer apenas provocar, e começa, então, a colocar seus argumentos como se o outro estivesse ali, na frente dele, paradinho, ouvindo. Tem direito a ensaio. Ou seja, quando percebe fraqueza ou falta de clareza em suas falas, ele "rebobina" a conversa e repete aquele trecho. Coisa de louco?

Coisa de humano. Muita gente faz isso. Talvez todo mundo faça isso. Vá saber. Ele faz muito, a ponto de se irritar. "Nunca vou ter essas conversas mesmo", diz para si mesmo, um tanto frustrado. Ou o diálogo acontece com tanta intensidade que ele se dá por satisfeito. "O assunto se esgotou para mim." A discussão mental o deixa exaurido.

Há um lado negativo. É quando, de tanto brigar dentro da cabeça, acaba irritado de verdade.

E há o lado cômico, quando o diálogo imaginário escapa da sua cabeça e se materializa em frases pronunciadas inadvertidamente em voz alta e acompanhadas por gestos. Em outras palavras, ele começa a falar sozinho.

A esposa, a princípio, estranhou. Durante o namoro ele parecia um sujeito tão normal. Mas na intimidade da vida a dois, o estranho hábito começou a se manifestar. Um fim de tarde, ela entrou no quarto quando ele discutia com alguém a respeito do Lula. As frases eram grunhidas e por isso não dava para entender o que ele dizia, se defendia ou acusava o ex-presidente, mas o gestual tornou a cena mais grave. Para tirar o pó do tecido, ele dava uns tapinhas no paletó que pendurava no cabide. Mas a ênfase, que deve ter vindo do calor da discussão mental, fez os tapinhas parecerem socos. A recém-casada ficou lá, na porta, vendo o marido boxear com o paletó, sem saber se interferia ou se corria de volta para a casa da mãe.

Foi a primeira de muitas cenas assim que ela presenciou. No começo, ele se enrolava, mas não admitia o vexame. Com o tempo, não havia mais o que esconder e ambos relaxaram. Como é bom se assumir, que alívio! A esposa aceitou e nem fez perguntas, mas jurou de pés juntos que com ela aquilo nunca acontecia. "Eu digo o que penso, não fico ruminando as conversas na cabeça", vangloriou-se. "Ah, sei...", ele fingiu acreditar.

Hoje está consciente de que discute mais na própria cabeça do que com o mundo exterior. Por natureza, tem pouco ânimo para se envolver em bate-papos exaltados. Preguiça, timidez, covardia talvez. Mas as discussões mentais, essas até ajudam a organizar o pensamento. Por via das dúvidas, adotou uma norma de segurança. Quando afloram muitos argumentos contra o seu ponto de vista inicial, quando o "amigo imaginário" está afiado nas réplicas, ele interrompe o debate. Intelectualmente, pode até ser um bom sinal. Mas ele tem medo de brigar consigo próprio e não conseguir se perdoar. Sabe como é, a gente diz coisas duras quando está discutindo.

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