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Marleth Silva

Estrangeiro, me empresta teus olhos

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O outro é um sujeito estranho. Não se comporta como nós, não entende nossas piadas, não torce para nossos atletas. Até acha estranha nossa comida! Não dá para entender o outro, que é qualquer um que não compartilhe a nossa cultura. O outro do brasileiro é quem nasceu do lá de lá do rio Paraná, do rio Orinoco. Todo mundo que nasceu em outro continente é um outro diferente de nós. E eu, paranaense, sou o outro dos paulistas, dos cariocas, de tantos que fazem piada com meu sotaque. Porque cada um tem a si mesmo como padrão de normalidade, como standard: não sou eu que tenho sotaque, eu falo “normal”; os outros é que falam estranho. Minha dieta é natural, a dos outros é que é esquisita.

Nascemos imersos em uma cultura e crescemos vendo o mundo através dela. Isso nos ajuda a viver. Até que trombamos com o outro

É assim mesmo, estejamos nós do lado de lá ou do lado de cá. Nascemos imersos em uma cultura e crescemos vendo o mundo através dela. Isso nos ajuda a viver. Até que trombamos com o outro. Em um evento esportivo, por exemplo, desses que atraem atletas de vários países e, com eles, as torcidas, os jornalistas. Logo, torcida e jornalistas desandam a comentar tudo, a dar opinião sobre tudo. A achar tudo estranho. Um francês invocou as forças do candomblé para explicar o desempenho surpreendente do competidor brasileiro. Tenho certeza de que o jornalista pensou que estava escrevendo um texto charmoso (repórteres resistem em reconhecer que ironia e sarcasmo não combinam com jornalismo). Estava apenas sendo tolo e soando como um sujeito do século 19, daqueles que atribuíam tudo que não entendiam à magia negra. Voilá! A religião do outro era sempre isso: magia negra, bruxaria sem bruxas (que bruxa é coisa de europeu), mas com espíritos das florestas, das águas, das montanhas. Quem sabe o espírito da águia encarnou no brasileiro e foi por isso que ele saltou mais alto?

A tolice do francês foi publicada em jornal, está exposta ao escrutínio público. Fico aqui imaginando a quantidade de bobagens que nós mesmos, brasileiros, devemos ter dito diante do desfile de estrangeiros, de “outros”, pelas praias e arenas esportivas do Rio. Para começar, brasileiros valorizam muito um traço da cultura local: a simpatia e extroversão. São duas características que tornam a vida mais agradável, mas não ajudam a sociedade a ser mais justa nem mais eficiente. Mesmo assim, achamos o máximo sermos assim tão alegres, desinibidos, festeiros. E queremos que todo mundo ache o máximo também. Será que acham? Não tenho como saber porque é aí que começa a parte interessante dessa confusão.

É muito difícil enxergar a própria cultura. É raro conseguirmos emergir do nosso mundo e olhá-lo com distanciamento. Às vezes chegamos perto, quando convivemos com pessoas de outras culturas, quando passamos muito tempo longe de casa. Quando voltamos, carregando um novo estranhamento dentro de nós, estamos no meio do caminho. Mas nunca zerados: nossos afetos e recordações contaminam o olhar. É impossível ser 100% estrangeiro em nosso próprio país, em nossa própria cidade. Também é difícil descobrir o que o outro vê aqui na nossa terra, mas qualquer vislumbre é uma descoberta que vale a pena.

Quisera eu emprestar os olhos do outro para ver o que ele vê e descobrir mais sobre quem nós somos.

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