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Em uma dessas grandes ironias da vida, a avó de Barack Obama morreu na noite de domingo, quando os americanos começavam a formar filas para votar na eleição que faria do neto dela o próximo presidente dos Estados Unidos. Madelyn Duhan cuidou de Obama e da irmã dele durante muitos anos. Moraram no mesmo apartamento onde ela estava quando morreu, aos 86 anos, de câncer. Às vésperas de ser eleito, o neto falou assim sobre a avó:

— Ela era um daqueles heróis silenciosos que estão em todo o país. Eles não são famosos. Seus nomes não saem nos jornais, mas todo dia eles trabalham duro. Não estão buscando os holofotes. Tudo que eles querem é fazer a coisa certa.

Parece discurso feito pelo James Stewart em filme do Frank Capra. Era o homem sobre o qual o mundo inteiro fala dando o devido valor aos anônimos. O valor dos heróis anônimos — os que querem fazer a "coisa certa" — é parte da cultura americana. As peças corretas do quebra-cabeça formam uma imagem coerente; as peças corretas da máquina fazem o mecanismo funcionar (mas a peça tem que ser correta, caso contrário o conjunto não funciona). Cada cidadão é uma peça independente, livre para agir como quiser — e essa liberdade dá a ele o peso de uma autoridade. Terminar de criar os netos enquanto o pai estava distante e a mãe deles, que engravidou muito jovem, voltava a estudar, foi a coisa certa para a senhora Madelyn Duhan. Por aqui não existe o culto ao herói anônimo, mas temos muitos avós fazendo a mesma coisa. É que nosso herói anônimo é mais anônimo que os deles.

Além de dar teto e estabilidade ao futuro presidente dos Estados Unidos, Madelyn também expôs a contradição do conceito de raça. Obama é um negro filho de uma mulher branca. Como será se olhar no espelho e ver um negro e olhar para a mãe e para os avós e ver uma pessoa branca? Confuso? Talvez, mas certamente alguém que vive essa situação tem uma compreensão mais ampla do que é raça, essa combinação de genes que influencia a aparência do ser humano. Obama foi cobrado por movimentos negros americanos por não ser mais claramente identificado com as causas raciais. Talvez a sua não adesão à causa tenha sido uma estratégia política. Mas, olhando pelo lado do indivíduo, é compreensível que Obama esteja dividido. Outro afro-americano (como dizem por lá) que foi cobrado nos Estados Unidos por sua pouca identificação pública com um grupo racial foi o golfista Tiger Woods. Uma vez vi o atleta milionário em uma publicidade de cartão de crédito que deixava a situação dele tão clara que só não entenderia quem não quisesse. Tiger Woods, aquele negro de 1m85, posava abraçado à mãe, uma senhorinha tailandesa de 1m50!

Quando somos crianças queremos nos parecer com nossos pais e avós. Gostamos de ouvir que somos a cara do avô paterno ou que herdamos algum traço de caráter ou talento da nossa mãe. Esses comentários nos fazem sentir parte forte de um grupo; a identificação diminui nossa solidão. Depois, passamos anos tentando ser nós mesmos, renegando algumas heranças para construir algo novo, para descobrir uma personalidade própria. É parte do jogo e é saudável. Mas antes de o jogo terminar, acabamos nos olhando no espelho e descobrindo novas identificações com pais, tios e avós. Há quem conte que, a certa altura, descobriu-se, na aparência ou nos maneirismos, uma cópia fiel do pai ou da mãe! Pelo carinho demonstrado ao falar da avó, o presidente negro dos Estados Unidos já deve ter superado a fase de distanciamento e deve estar agora buscando a identificação com a operária branca, de origem irlandesa que foi seu modelo durante a adolescência. É confuso mesmo, não é? Mas não deixa de ser maravilhoso.

Marleth Silva é jornalista.

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