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Marleth Silva

Jogo com as cartas que me couberam

 | Felipe Lima
(Foto: Felipe Lima)

De tempos em tempos alguém diz que enxerga nostalgia no que escrevo. Não me vejo como uma pessoa nostálgica, mas entendo quem me diz isso. Falo de músicas velhas, lamento a destruição de imóveis antigos, lembro a infância. Mas garanto que não me passa pela cabeça nem por um momento que a minha geração seja melhor que as que vieram depois, nem afirmo que haja mais bobagens na cultura de hoje do que “no meu tempo”. Odeio a expressão “no meu tempo”.

O que me passa pela cabeça é que o presente é um rei absolutista – tem poder total sobre a nossa percepção do mundo. Ele reina e tudo que veio antes deve ser esquecido e tudo o que vem depois é uma projeção dele mesmo. Mas eu, você, todo mundo, sabemos que não somos só o presente. Cada uma das nossas reações é carregada do que já vivemos, nossos sonhos de futuro são marcados pelas nossas origens. Em resumo, somos muito mais que este corpo que está aqui, dizendo “presente!”

Também me passa pela cabeça que viver como se não houvesse amanhã ou como se não houvesse ontem é um desperdício.

O passadismo é um risco, é uma anestesia

Seja lá como for o presente, bom ou ruim, glorioso ou lamentável, eu sou mais que ele. Quem me vê não vê os lugares que vi, o amor que senti, a dor que carreguei. Não me vê no meu melhor momento e, aleluia!, não assiste às gafes e bobagens que fiz. Mas tudo isso segue comigo e é por isso que o presente é pouco para mim e preciso viajar para frente e para trás para sentir que estou vivendo plenamente, que não estou perdendo coisas lindas, que não estou valorizando coisas tolas.

O passadismo é um risco, certamente – a idealização do que ficou para trás é tão simplificadora quanto só ver o presente. A tentação é grande: talvez nossos melhores momentos ficaram lá, naquele outro tempo. Nossas pessoas mais queridas talvez não estejam mais aqui, no dia em que escrevo, na hora em que você me lê. “Eu era feliz e ninguém estava morto” – mais uma vez, Fernando Pessoa mata a charada. Como forma de anestesia, cultivamos o passado. É isso, o passadismo é uma anestesia.

Dito tudo isso, voltemos à nostalgia.

A grande arte, as grandes canções, os grandes livros – até as histórias mais divertidas que aconteceram com este ou com aquele – estão espalhados no tempo. Como não desfrutá-los?

Como não revisitar a história – a dos livros, dos arquivos, das ruas – para entender o que está acontecendo hoje? Diante de tanta beleza que encontraremos, como não se motivar em agir, fazer coisas bonitas? Diante de tanta violência, tanta burrice que também encontraremos, como não se motivar em reagir?

Só estou aqui, neste ano de 2016, porque uma série de acasos me pôs neste momento. Jogo com as cartas que me couberam.

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