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Na rede, com um livro e sem vergonha

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Foi assim: desfrutando uma aposentadoria precoce a que foi levado por uma mudança de cidade, meu vizinho Alfredo decidiu que se tornaria um leitor. Nunca teve o hábito de ler, nem jornais nem livros. Mas, naquela fase da vida, perto dos 60 anos, achou que seria uma boa forma de ocupar seu tempo e manter o cérebro ativo. Bateu na minha porta e me explicou seu plano. Precisava de ajuda para começar. Selecionei dois livros, cujos títulos não recordo, e lhe entreguei.

Todas as tardes, ele se deitava na rede, estendida na varanda de seu sobrado, e lia. Quando passávamos, acenava, sorridente. Alfredo se tornou um leitor, como pretendia, e não abandonou o hábito. Não tem veleidades de colecionador. Empresta e ganha livros dos amigos. Guarda poucos exemplares em casa. Redistribui os que lhe são presenteados.

Eu sinceramente admirava a falta de pudor de Alfredo, que lia em público nas tardes de segunda, de terça, de quarta, não se importando com as piadas dos vizinhos.

Muito tempo depois de Alfredo ter voltado para São Paulo, eu ainda olhava automaticamente para a sacada da casa onde morou toda vez que saía para o trabalho, após o almoço. É tolice, eu sei, mas me marcou o fato de ele se expor ali, sem embaraço, na rede (que para os brasileiros é um símbolo da preguiça), na hora em que todos os vizinhos rumavam para o batente.

“Você tinha é inveja”, dirá você. Era inveja também, admito. Mas eu sinceramente admirava a falta de pudor de Alfredo, que lia em público nas tardes de segunda, de terça, de quarta, não se importando com as piadas dos vizinhos. Várias vezes ouvi vozes que faziam graça dizendo algo como “que boa vida!” Afinal, ele estava se dedicando a algo que é visto como passatempo, como recreação.

É esse o x da questão. Ler é pura recreação? É uma atividade que deve ser necessariamente confinada àquele tempinho de relaxamento na tarde de domingo ou à meia hora antes de dormir?

Ler faz tão bem para tantas pessoas, ajudando-as a viver intensamente novas experiências, ajudando-as a se localizar neste vasto mundo, que não deveria ser relegado à categoria de passatempo. Mas mesmo eu, que gosto de ler, senti esses laivos de culpa quando a leitura invadiu o “horário de expediente”. Por isso admirava a tranquilidade com que Alfredo dedicava horas de seu dia ao novo hábito. Sei que minha vergonha vem de um condicionamento social muito forte que gira em torno da produtividade. Há de se trabalhar, para produzir, para ganhar dinheiro. Tem muita coisa melhor para se fazer na vida que fica relegada à categoria de lazer, passatempo. Ler é uma delas. Uma injustiça.

A leitura de jornal sempre teve outro status. Não é vista como lazer, mas como uma maneira de informar-se, de aparelhar-se para a vida prática. Mesmo em ambientes de trabalho, não é surpresa ver alguém lendo jornal. As empresas até mantêm assinaturas de periódicos para seus empregados. Só causa estranheza quando o sujeito passa muito tempo com aquelas folhas na mão. Textos de 30 ou 40 anos atrás dos grandes cronistas brasileiros, como Rubem Braga e Otto Lara Resende, fazem referência ao folclórico funcionário público que passava a manhã toda lendo o jornal em sua mesa na repartição.

Desconfio que o tempo dedicado à leitura no ambiente de trabalho só aumentou com a onipresença da internet. Entre idas e vindas por sites de curiosidades ou de fofoca – cinco minutos aqui, dez minutos depois –, muitas pessoas devem passar horas lendo no monitor, sem que ninguém perceba. Toma tempo e pode se resumir a um vislumbre de informações fúteis.

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