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Pensei em escrever um texto com o título Meus crimes favoritos, mas, revendo a ideia, me dei conta de que era de mau gosto. Desrespeitoso com as vítimas e perigoso cartão de visita. O leitor não me conhece e pode deduzir que sou uma sociopata saindo do armário. Não sou (pelo menos que eu saiba). É que dois episódios ocorridos nesta semana me lembraram que há crimes que nos marcam, apesar de não terem relação direta conosco. Realmente a palavra certa para definir o espaço que ocupam não é "favoritos". Talvez "íntimos" seja melhor, porque fazem parte do nosso imaginário.

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O primeiro episódio foi o relançamento do livro Aracelli, Meu Amor, em que o jornalista José Louzeiro investiga o caso da menina capixaba assassinada há 40 anos. Foi ver o nome na capa do livro e – zooim! – lembrei o medo que senti e que sentiam todas as crianças diante do noticiário tétrico sobre Aracelli e Carlinhos, outro menino assassinado na mesma época.

O rostinho sorridente e os grandes olhos de Aracelli e a carinha bonita emoldurada pelo cabelão bem anos 70 de Carlinhos lembravam às crianças que o mundo é cruel e que o perigo nos ronda como um fantasma raivoso. Depois vieram Claudia Lessin Rodrigues e Ângela Diniz, vítimas de homens ricos e mimados que não aceitaram um não. Era a vez de as mulheres se assustarem. Crimes assim traumatizam o país inteiro. Aqui estou eu para comprovar.

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Se cito apenas crimes antigos é porque o assunto saiu do meu radar junto com as bonecas e os cadernos escolares. Ou talvez eu tenha sido dessensibilizada pela piora na violência no país. Agora, quando uma história horripilante gruda na minha memória, é pelo aspecto pitoresco. Porque, sim, há crimes pitorescos. Veja o caso de Flores.

Duas senhoras argentinas bem entradas em anos me falaram anos atrás da emparedada de Flores, bairro de Buenos Aires onde as duas viveram na juventude. O pacato barrio foi abalado pela descoberta de que uma moradora havia matado a própria mãe. Os vizinhos notaram o desaparecimento da velhinha e a filha explicou que ela tinha ido visitar um parente. Talvez tenha inventado detalhes: que pegou o trem noturno, que estava descansando nos pampas, que havia tido um infarto fatal e sido enterrada por lá mesmo. Mas algum vizinho desconfiou e a polícia foi chamada. Descobriram, para escândalo de toda Buenos Aires, que a filha havia matado a mãe e colocado o corpo na banheira, que em seguida foi fechada com cimento. Calculo que o crime tenha ocorrido nos anos 30.

Não é a crueldade da filha que me impressiona nessa história. Vai ver a mãe era terrível (tinha "personalidade forte", como se costuma dizer eufemisticamente das pessoas insuportáveis). Vai ver a filha ansiava por liberdade. Não que isso justifique o matricídio, mas tampouco me meto a jugar esta portenha de triste sina. O que me impressiona é o cenário do crime, um ambiente doméstico e pacato, e a artimanha da filha para esconder o corpo. Artimanha digna de Edgar Allan Poe, que no conto O Gato Preto inventou um personagem que mata a esposa e a empareda na adega.

Era inevitável que eu me lembrasse do crime de Flores ao ler que o papa Francisco nasceu lá. Esse é o segundo episódio da semana a que me referi no começo do texto. Deixei para contar isso no final porque talvez vocês já estejam cansados do tema papal. O fato é que o papa deve conhecer bem o crime de Flores. Se um dia eu encontrá-lo, pedirei os detalhes.

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