Há uma cena no filme Ao Entardecer, em cartaz em um cinema de Curitiba, em que duas irmãs recordam o dia em que a mãe, uma cantora promissora que nunca atingiu o estrelato, levou-as ao Carnegie Hall para ver um show. As duas lembram do episódio de forma diferente: Constance diz que a mãe chorou de emoção por estar ouvindo uma grande cantora na companhia de suas filhas; Nina acha que ela chorou de tristeza por estar amarrada a duas crianças pequenas sem ter atingido a fama que a levaria a cantar naquele mesmo palco.
A compreensão que as duas tiveram da vida da mãe se espelha na forma como conduzem seus dias. Obcecada pelo medo de levar uma vida insípida ou terminar frustrada, Nina pula de uma profissão à outra e de um namorado para o próximo, procurando fugir da acomodação e buscando algo grandioso. Sua irmã escolhe uma profissão e um marido e busca satisfação no seu dia-a-dia, ocupado com tarefas rotineiras. Afinal, qual é bem-sucedida? Afinal, o que é ser bem-sucedido?
O filme gira em torno dessa pergunta subentendida nas discussões das duas irmãs e nas lembranças da mãe, que delira no leito de morte. Ela se recorda da juventude, nos anos 1950, quando seu grupo era formado por jovens bonitos, talentosos, animados e sonhadores; todos tiveram de fazer escolhas cedo e arcar com as conseqüências. A grande paixão, nunca realizada, vai se transformar em uma frustração eterna? Para viver plenamente é preciso se tornar o mais importante, o mais festejado no ofício que você escolheu? A mãe não pode responder a essas perguntas em raros momentos de lucidez, a única frustração que chega a exprimir é a de não ter feito uma viagem maluca de veleiro com o rapaz por quem era apaixonada.
Quem responde é a amiga que vem visitá-la e que, ainda jovem, casou com um homem amando outro que não a quis: "Somos criaturas estranhas, não é? E no final tanta coisa acaba não tendo valor algum."
A mãe não era a figura frustrada que a filha imaginou porque viveu sua vida como pôde. A filha, essa sim, estava frustrada porque perseguia uma idéia de vida permanentemente excitante, e isso não existe. Excitação, projeção, admiração viciam. Quando elas acabam, o viciado se sente insignificante e tem de ir atrás de mais uma dose. Um exemplo: pelas regras implícitas da nossa sociedade, um escritor é bem-sucedido se seus livros venderam bem e ele for aclamado pela crítica. Mas se o escritor pensar nisso o tempo todo, sua vida vai virar um inferno e sua obra, um lixo. Quer apostar? Qualquer profissional que pautar seus dias pela busca do reconhecimento vai ficar permanentemente angustiado. O que não dá é para viver sem convicções ou sinceridade. No final, só vamos nos arrepender mesmo das viagens malucas que não fizemos.
Marleth Silva é jornalista.