| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Há quem diga que foi a domesticação dos cães que permitiu ao homem primitivo dormir a noite toda, profundamente. Antes deles, o sono era leve, uma quase vigília para não ser pego de surpresa por feras ou inimigos. O cão domesticado passou a ser a sentinela e homens e mulheres puderam sonhar com os anjos. O ser humano adotou o cão e o cão adotou o ser humano em busca de restos de comida. Talvez seja a parceria mais perfeita de que se tem notícia.

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Agora o ser humano não precisa mais de cachorro para quase nada. Cão de guarda? Cão-guia? Pastores? Quem os utiliza com esses fins é minoria no enorme grupo dos donos de cães. Domesticado a um nível que não se compara com o de nenhuma outra espécie de animal, a ponto de se transformar no "melhor amigo", o cachorro não foi abandonado. Mas seu relacionamento teve uma estranha evolução. Hoje o cão é um brinquedo, um objeto de consumo. No Brasil, é um modismo até.

Cães são tratados como crianças. Pior, são mimados como crianças que nunca crescerão e que por isso podem ser "estragadas". Talvez essa relação humanizada não seja ruim para os cães – não vou me embrenhar na psicologia canina, que não conheço. O que é discutível é o investimento em raças, em pedigree, isso, sim, uma prática que transforma o animal em produto consumível.

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Seguindo a lógica de mercado, deve haver novidades no ramo dos cães. Deve haver diferenciais para agradar a todo tipo de cliente. Cão muito grande, cão muito pequeno, exótico, chique, bolas de pelo, magrelas, cara de fera. Daí a valorização das raças, que são o correspondente no universo pet ao design no mundo dos objetos.

Antigamente se trabalhavam as raças para que os bichos fossem usados em atividades práticas, como a caça. Agora, aquelas características iniciais são aperfeiçoadas e exageradas em função da aparência. O resultado é que, entre os mamíferos, o cão é o que apresenta maiores diferenças morfológicas. Altura, peso, pelagem variam numa escala que não se vê em nenhum outro animal porque foram manipulados, são resultado da intervenção humana sem nenhuma relação com o meio ambiente.

É uma contraevolução o que ocorre com os cachorros. Mesmo que não sirvam para nada, as orelhas enormes de algumas raças são preservadas, assim como os pelos que cobrem os olhos e atrapalham a visão, as perninhas curtas demais, a coluna longa ou o focinho achatado que atrapalha a respiração. O mesmo ocorre com doenças que se tornaram comuns em algumas raças porque os genes que as provocam são mantidos através dos cruzamentos controlados. Preserva-se o pedigree e também os problemas hereditários, que causarão sofrimento aos cachorrinhos e despesas para seus donos.

A evolução, aquela que Darwin descreveu no século 19, só existe para os vira-latas. Esses são sempre sobreviventes. São resultado de cruzas aleatórias e herdeiros de gerações de "fortes" que, se transmitiram seus genes, foi porque eram os mais adaptados da ninhada. Mas vira-latas não podem ser comercializados e são parecidos entre si. Não têm glamour nem preço.

Os cães, de que raças forem, são todos bichos interessantes. Os donos – talvez a maioria – são pessoas amorosas e bem-intencionadas. Mas há uma futilidade e um mercantilismo no mundo dos animais de estimação que é perniciosa para os bichos. É mais uma das esquisitices do ser humano moderno, que ainda vai dar muito o que falar.

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