A loira alta chega se desculpando e aborda a vendedora que me atende em uma loja de móveis usados na Rua Riachuelo. Quer saber quando irão buscar a cômoda que precisa tirar de um apartamento “o mais rápido possível”. Como estou só olhando os velhos relógios de parede, digo que posso esperar. Elas acertam uma data, conversam mais um pouco, se despedem com beijinhos. “Sempre quebramos uns galhos para ela”, me diz a vendedora.
O “galho” em questão era a cômoda deixada em um apartamento que a mulher loira, corretora de imóveis, se empenhava em vender. Depois de dois anos de tentativas, finalmente havia um interessado. Mas ele se irritou com a presença do móvel e por isso a corretora achou por bem tomar providências.
Anos atrás ouvi história semelhante sobre uma cristaleira deixada em um apartamento à venda. Naquele caso, o comprador supôs que a peça antiga seria dele também e ficou aborrecido quando descobriu que não era assim. Bateu pé e, na ânsia de garantir o negócio, a imobiliária se incumbiu de encontrar outra cristaleira antiga para ele.
Me intriga essa relação das pessoas com os objetos, que vai do desejo obsessivo à indiferença, às vezes em curto intervalo de tempo.
A relação das pessoas com os objetos vai do desejo obsessivo à indiferença, às vezes em curto intervalo de tempo
Quando é preciso esvaziar uma casa ou apartamento, descobre-se uma infinidade de objetos esquecidos e um ou outro móvel que resiste porque ninguém se animou a tirá-lo dali. Depois de dias empacotando e decidindo o destino de tanta coisa, tem-se vontade de abandonar tudo ou jogar no lixo. De trancar a porta e fingir que não notou que ainda tem algo lá dentro. De sair correndo. É assim que surgem aqueles resquícios de antigos moradores nos imóveis que deveriam estar vazios. É uma estante velha deixada na lavanderia, uma cômoda no quarto, uma mesinha largada no corredor.
O escritor francês Georges Perec, lá nos anos 60, acreditou que seria possível falar do ser humano através dos objetos que ele traz para sua vida, que deseja, que valoriza. Assim como alguns autores registram o fluxo do pensamento dos personagens, Perec registrou o fluxo dos objetos desejados e comprados por um casal de parisienses no livro As Coisas. Parecia surgir uma nova corrente literária, que foi batizada de algo como “coisismo”. Não durou, o coisismo. Por quê? Não foi só porque o romance de Perec é mediano.
Por mais materialista e consumista que a sociedade tenha se tornado, por mais valor e simbolismo que se dê aos objetos, o pensamento que gira em torno deles tende a ser efêmero.
Livro do Perec que vale a pena ler é A Vida Modo de Usar, que em alguns trechos também usa objetos para falar de pessoas, mas de forma sutil. Um personagem passa os anos registrando em aquarelas o que vê pelo mundo. Cola as aquarelas em uma placa de madeira e recorta, fazendo um quebra-cabeças. Na velhice, ele monta os quebra-cabeças e... Me detenho por aqui para não estragar a surpresa de quem for ler A Vida Modo de Usar pela primeira vez.
As memórias registradas em aquarelas, assim como as fotografias e os souvenirs de viagem, são reconfortantes. É como se o sujeito dissesse para si mesmo que, se os momentos importantes estiverem guardados na cabeça dele, mas só na cabeça dele, então tudo fica muito vulnerável. Tudo mesmo: os bons momentos, os encontros, a vida. Diante dessa vulnerabilidade, o objeto oferece alguma segurança e reconforta. Com ele, pode-se “tocar” as memórias, o passado. Por isso alguns objetos têm valor e por isso inventamos o souvenir, essa palavra tão bonita e que anda fora de moda.
Deixe sua opinião