Se eu encontrasse o Otto Lara Resende diria a ele: "Você é brilhante, homem!". Note que eu usaria o verbo no presente apesar de ele ter morrido há exatos 20 anos. Essa sobrevivência parcial é possível porque Otto deixou muitos escritos. Foi-se o corpo, mas ficaram as ideias. Estou lendo as cartas que ele escreveu para Fernando Sabino, reunidas no livro O Rio é Tão Longe (Companhia das Letras). Cartas escritas às pressas, espontâneas, comentários rápidos sobre o mundo e sobre o que ele pensava e sentia. Um humor, um uso livre das palavras que é de fazer inveja.
Aliás, tenho o prazer de contar para vocês que ando passando boas horas em companhias de homens inteligentes. Horas prazerosas, digo sem medo de parecer escandalosa. Estou lendo cartas de Otto Lara Rezende, Cyro dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade. Se tenho algo em comum com esses três senhores, é apenas minha origem. Sou filha, neta e bisneta de mineiros. Pois leio confissões que os três fizeram para os amigos lá nas primeiras décadas do século 20 e sinto que somos todos íntimos uns dos outros. Um milagre produzido pelos livros.
Cyro e Drummond trocaram correspondência durante toda a vida. Já no caso de Otto parece que não havia a troca, pelo menos não como ele gostaria. Ele escrevia para os amigos enquanto trabalhava nas embaixadas brasileiras de Bruxelas e de Lisboa e quase não recebia respostas. Por isso suas mensagens tem um tom de quem fala sozinho, de quem pensa em voz alta. Escrevia forçado pelas saudades dos amigos, mas era como se escrevesse um diário que ninguém fosse ler. Parece que para cada 10 cartas que enviava a Fernando Sabino, este respondia uma. Talvez venham daí as confissões desavergonhadas ou talvez Otto fosse mesmo capaz desta sinceridade sem pudor. Como quando, em março de 1958, confessa uma crise de ciúmes e humilhação provocada pelos contos de Dalton Trevisan:
"O Dalton escreveu contos geniais, diz você. E aqui estão os anteriores dele, ótimos. Isto está me dando uma raiva, estou ficando invejoso pra burro e notícias assim me esgotam, me lançam numa impossibilidade, é aquela coisa de jogador que, além de perder, não ganhar nada, ainda tem de contemplar a felicidade do filho da puta que levou a bolada. Estou muito ressentido, se continuar assim vou ficar inabitável, você vai ver".
Nem Otto se tornou inabitável nem a inveja o afastou de Dalton, que vai sendo citado várias vezes ao longo do livro.
Um mês antes, o mineiro havia feito este desabafo grave e cômico ao mesmo tempo:
"Hoje, estou decididamente convencido de que o homem (eu inclusive) é um ser mortal. Sobre isso não tenho a menor dúvida. Tenho visto morrer muita gente boa, dessa eu não escapo."
Assim seguem as cartas e o livro, que eu recomendo a você, leitor. É delicioso acompanhar o dia a dia de um homem inteligente que reflete sobre o que está acontecendo a sua volta e que mantém um olhar carinhoso sobre as pessoas que cruzam seu caminho.
Drummond e Cyro não se parecem com Otto. Não se divertiam tanto e, no caso de Drummond, é evidente que sentia o peso de uma melancolia (depressão?) que ia e vinha. Ele observa o mundo, sente-o profundamente e sabe que isso faz a diferença. Em duas cartas a Cyro, o poeta fala sobre pessoas que tiveram uma vida agitada e nas quais, apesar disso, percebe-se a superficialidade de quem não refletia de verdade, não sentia de verdade. O resultado é um vazio, percebe Drummond. Muito barulho por nada.
Lá em cima, quando comecei a escrever, me dei conta de que agora em dezembro fará 20 anos que Otto morreu. Em maio, ele teria completado 90 anos. Transformo, então, esta coluna em uma homenagem a ele. Em desagravo a todas aquelas cartas que ele escrevia aos amigos e que ninguém respondia, leiamos seus livros. Garanto que não será preciso esforço.