Quem conhece minha atuação profissional deve esperar que eu escreva sobre Ariel Sharon. Mas resolvi que hoje só vou falar de quem eu gosto.

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Estamos em plena 32.ª Oficina de Música de Curitiba. A primeira fase contemplou a música antiga e erudita. A segunda contempla a música popular do Brasil. Esse é o evento que mais me dá orgulho desta cidade. Vem muita gente boa de fora, mas o que mais me emociona é a quantidade de músico excelente daqui de dentro.

Só pra manter um tiquinho da chatice, queria explicar o porquê de eu não utilizar o termo Música Popular Brasileira (MPB). Esse termo já foi consagrado e não serei eu a propor a sua não utilização. Mas gostaria de contar que, na origem, MPB é um trocadilho com MDB – na época a única oposição consentida pelos militares e que fazia frente à Aliança Renovadora Nacional (Arena), grupo de sustentação do governo – e diz respeito a uma música popular brasileira específica dos anos 70 que resistia aos ditadores. Era o pessoal do MAU – no caso, o Movimento Artístico Universitário, do qual faziam parte artistas como Ivan Lins e Vitor Martins; João Bosco e Aldir Blanc; Milton Nascimento e Fernando Brant; Fagner e Belchior e outros.

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Elis Regina, um dos gênios vocais brasileiros, em 1966 (durante o período em que a estética musical definia o perfil político-ideológico de artistas e fãs) chegou a organizar uma passeata em São Paulo, patrocinada pela TV Record, contra as guitarras – vistas pela grande maioria dos estudantes e intelectuais da época como instrumento a serviço do imperialismo yankee. Elis se declarava uma cantora de protesto. Do outro lado do front, uma cantora do programa da Jovem Guarda (uma das precursoras, portanto, do rock no Brasil) era aplaudida por um público que não frequentava as universidades. Os excluídos – público-tema das composições de protesto – queriam mesmo era ouvir Roberto Carlos e seus amigos cantarem "e que tudo mais vá pro inferno". Essa cantora de iê-iê-iê (primeiro nome do rock no Brasil) era Vanusa. Sim... Vanusa! Essa mesmo. Aquela que foi ridicularizada em um desses programas de mau "humor".

Vanusa, em 1975, gravou o LP Amigos Novos e Antigos, título de uma das faixas, composta por João Bosco e Aldir Blanc. No mesmo disco gravou Outubro, de Milton Nascimento e Fernando Brant, e Paralelas, de Belchior. No ano seguinte, Elis gravou em Falso Brilhante as canções Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, de Belchior, e ainda mais três composições da parceria João Bosco e Aldir Blanc.

Nos anos 70, portanto, Elis e Vanusa eram duas jovens de movimentos musicais aparentemente opostos na década anterior, mas que estavam antenadas nos grandes compositores que resistiam àquela situação de exceção que o país vivia. As duas se conheciam e eram muito conhecidas e reconhecidas pelo grande público. Claro que Elis ainda recebia os louros de uma pretensa intelectualidade que julgava a Jovem Guarda um bando de alienados. Hoje, com a história nas mãos, não acredito em quem não reconheça Roberto Carlos e seus amigos como revolucionários nos costumes, na linguagem e na sonoridade.

Mas... o que diferencia Elis de Vanusa mesmo é o fato de Vanusa ser uma sobrevivente. Não se pode fazer caricatura de Elis. Ela morreu! Vanusa está aí. Ah... mas ela esqueceu a letra e desafinou no Hino Nacional. E daí?! Alguém acha mesmo que qualquer pessoa da geração de Vanusa não sabe cantar o hino? Alguém acha mesmo que Vanusa é desafinada? Procure na internet a sua gravação de What To Do, de 1973, com rifes de guitarra anteriores e idênticos aos do Black Sabbath.

No tempo de Elis e Vanusa, as gravadoras contratavam diretores artísticos e não diretores de marketing. Disco era cultura.

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Quando da infeliz aparição na televisão, Vanusa estava claramente sob efeito de drogas – lícitas ou ilícitas, não sei, não importa –, o que, aliás, foi o que matou Elis. O que me incomoda é: como alguém consegue dormir depois de ter desqualificado Vanusa daquela forma? Como uma pessoa consegue viver depois de ter transformado outra, da noite para o dia, em chacota nacional?

A caricaturização que fizeram de Vanusa me lembrou muito o que fizeram com Aracy de Almeida, no longo prazo, no Programa Silvio Santos. Aracy, a cantora preferida de Noel Rosa, aquela que gravou seus maiores sucessos, foi por anos vendida como a jurada mal-humorada e grosseira de showzinho de calouros.

Talvez por romantismo, acredito que é por apostar e valorizar a memória musical da cidade e do país que Curitiba está na 32.ª edição da Oficina de Música. Por 20 dias a cidade vive uma euforia cultural que sempre parece que vai transbordar. Cursos cheios, teatros lotados... O problema é que, nos outros dias do ano, o músico da cidade literalmente desaparece para viver. Precisa sair daqui e tocar em outros estados ou na Europa pra ser reconhecido. Nos outros 345 dias o público da cidade volta a ter acesso só ao The Voice e sua estética massificadora. Dos anos 90 pra cá a ordem é deixar tudo igual: axé, pagode, sertanejo... todo mundo cantando com aquelas voltinhas e aqueles trinados medonhos e repetitivos. Ainda bem que Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso e Clara Nunes morreram pra não ouvir isso.

Pois bem... dia 22 temos o show da lindíssima Rogéria Holtz no charmosíssimo Teatro Paiol. Rogéria, sim, orgulharia Aracy, Elizeth e Clara. É precisa, clássica e, ao mesmo tempo, audaciosa, corajosa. Como Elis e Vanusa, fareja o que é bom. Ela mesma assina algumas das canções do novo disco. Aliás, ela e o Grupo Na Tocaia (Glauco Solter, Endrigo Bettega, Jeff Sabbag e Mário Conde), que a acompanhará, gravaram uma música de Wellington Wella, o professor de Português daqui de casa. Ficou linda! Ah... que pena que não há mais diretores artísticos nas gravadoras...

Tem mais: dia 24, no Guairão, teremos Hermeto Pascoal – que teve sua música Alumiou gravada por Vanusa, em 1974, e que acompanhou Elis no Festival de Montreux, em 1979.

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Pronto... só falei de quem eu gosto.

Luciana Worms é advogada, radialista, professora e autora de Brasil século XX – Ao pé da letra da canção popular, vencedor do Prêmio Jabuti

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