É como se fosse uma ciranda. Paulo Mendes Campos, mineiro, cronista e poeta, apresentou John dos Passos, escritor americano do estado de Illinois, ao sanitarista Noel Nutels, ucraniano naturalizado brasileiro, médico formado em Recife que acompanhou os irmãos Villas-Bôas nas expedições ao Xingu.
Por que falar de tanta gente em um texto só? Porque é uma delícia lembrar deles e do que produziram
Nutels foi o primeiro médico a trabalhar a prevenção de doenças que são transmitidas aos índios nos contatos com o “homem branco”. Ainda estudante, em Pernambuco, conheceu na pensão de dona Bertha, sua mãe, o músico Fernando Lobo, de quem ficou amigo. Lobo é autor de “Chuvas de Verão”, aquela canção interpretada por Francisco Alves e, mais tarde, por Maysa e Caetano Veloso, que diz:
“Podemos ser amigos simplesmente
Coisas do amor nunca mais
Amores do passado, do presente
Repetem velhos temas tão banais.”
Ponha pra tocar “Chuvas de Verão”, na voz de Maysa e o resto do seu dia vai ficar melhor. Até o resto deste texto vai parecer melhor.
Esta semana o jornalista Mario Sergio Conti contou em sua coluna no jornal O Globo que “Fernando Lobo” é título de um poema do inglês Anthony Thwaite. O poema está na última edição da revista London Review of Books. E diz (reproduzo a tradução de Conti):
“Meu escuro amigo brasileiro, há setenta anos
Em Washington. Éramos ambos estrangeiros
Pelos cantos do ginásio Gordon Junior.
Quando o brilho de minha pré-escola inglesa
Embaçou, minhas notas ruíram e perdi o
Interesse em tudo, exceto selos, cobras e sexo.
Fomos a embaixadas mendigar selos
E causamos na Avenida Massachusetts,
Brincando de calota-voa com os carros
(Jogar uma na rua, gritar ‘a calota caiu!’,
Ouvir os pneus cantarem até o carro brecar).
Mario Sergio Conti nota que a história contada no poema não faz sentido já que o poeta branquela e inglês tinha 13 anos quando viveu em Washington e seu amigo escuro e brasileiro tinha 30 anos quando trabalhou por lá. Por mais mal contada que seja a história, o fato é que os dois devem ter se cruzado e quem sabe até o “escuro amigo brasileiro” tenha participado mesmo de alguma brincadeira com o inglês. Quando um adulto se permite brincar com uma criança tratando-a de igual para igual, a relação entre os dois se torna inesquecível. O que explicaria porque, agora aos 85 anos, poeta respeitado em seu país natal, Thwaite se recorde e talvez fantasie sobre aquele encontro, como mostram os últimos versos do poema:
“E voltei para casa na Inglaterra, e a guerra
Acabou, e esqueci Fernando Lobo
Até que ontem sonhei com o seu sorriso
Escuro, conspiratório e estrangeiro, como eu”.
Fernando Lobo foi um compositor prolífico que vem sendo gravado e regravado há 70 anos. Além do romantismo, também se permitia uma irreverência que na época era comum e hoje desapareceu. É o que se vê em “Nega Maluca”, que fez tanto sucesso nos anos 50, interpretada por Linda Batista, que acabou virando nome de bolo.
“Tava jogando sinuca
Uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu, não senhor
Tome que o filho é seu, não senhor
Pegue o que Deus lhe deu, não senhor.”
Como se vê, ele seguia um caminho bem diferente daquele que, anos mais tarde, trilharia seu filho, Edu Lobo. Este um compositor de melodias sofisticadas e autor de preciosidades como a trilha musical do balé O Grande Circo Místico, que fez junto com Chico Buarque para o Balé Guaíra.
Comecei a ciranda com Paulo Mendes Campos e termino com Edu Lobo e o Balé Guaíra. Por que falar de tanta gente em um texto só? Porque é uma delícia lembrar deles e do que produziram. Porque hoje é sábado. Porque sem obras como as desses senhores, quem ainda teria alguma admiração pela espécie humana?
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