Esta crônica toma emprestado o título do precioso livro de Rodrigo Melo Franco de Andrade para contar uma história de velório. Uma história que não protagonizei, mas presenciei. Morreu um amigo e passei pela capela mortuária para prestar minha homenagem. Só conhecia a viúva e ela não estava lá. Tinha ido em casa se trocar. Logo voltaria, me disseram. Resolvi esperar um pouco para vê-la.
O falecido era uma pessoa conhecida e a capela estava lotada. Perdida entre estranhos, preferi ficar do lado de fora. Me postei perto da entrada da capela vizinha, a número dois, que estava vazia. Mas vazia ela não ficaria por muito tempo. Bem em frente estacionou um veículo grande de onde saltou um rapaz. Usando uma espécie de maca, ele se empenhou para colocar um caixão sobre ela. Não deveria ter mais alguém para ajudá-lo? A família do morto não deveria estar por ali? Não havia ninguém.
Passaram-se alguns minutos e o grupo saiu da capela. Parecia tudo acertado. Mas o motorista ainda tinha uma tarefa
Na frente da capela 3, quatro homens que participavam de outro velório deviam estar se fazendo as mesmas perguntas. Observavam o rapaz se batendo com o caixão e faziam comentários. Acabaram se oferecendo para ajudá-lo. Ouvi trechos de frases ditas enquanto empurravam a maca com o caixão para dentro da capela 2. Era família do interior. O motorista do carro funerário chegou cedo demais.
Passaram-se alguns minutos e o grupo saiu da capela. Parecia tudo acertado. Mas o motorista ainda tinha uma tarefa. Pegou um pequeno aparelho de som do banco dianteiro do carro funerário e explicou: o falecido gostava de música e a família queria que houvesse som o tempo todo durante o velório. Ficaram todos olhando para o aparelho. Era aquele três-em-um, velho, do tempo em que se usava fita cassete. Um dos homens advertiu o motorista: “Não ligue em rádio porque os intervalos comerciais vão soar mal durante o velório”. “Mas o que eu faço, então?” – choramingou o rapaz.
Os homens se dispuseram a procurar CDs em seus carros. Para não deixar o falecido sozinho, foram dois de cada vez. Compreendi que era uma operação delicada e com poucas chances de sucesso e resolvi cooperar. Saí também e fui ver o que tinha no meu porta-luvas. O carro estava estacionado longe. Só encontrei um CD da Elza Soares. Uma ou outra faixa até caberia à situação (“Amanheceu, que surpresa me reservava a tristeza nessa manhã muito fria / algo de anormal / tua voz habitual não ouvi dizer bom dia”). Mas depois de Bom dia a próxima canção era um samba animado (“O samba começou / agora é chegada a hora de eu ficar feliz”). Deixei Elza Soares no porta-luvas e dei partida no motor para ir embora. Mas como eu poderia contar a história pela metade? Voltei às capelas para ver como os quatro senhores haviam se virado com a trilha sonora do velório.
Não vi sinal do carro funerário nem do motorista, e os quatro homens estavam de volta na porta da capela três. Tudo havia mudado. O falecido que gostava de música não estava mais só. Lá de dentro se ouvia o choro baixinho das mulheres e o vozeirão de Sergio Reis lamentando o destino triste do menino da porteira.
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